Noite, indignação e religiosidade
Está associado à mitologia grega o nome de um dos mais multifacetados e prolíficos autores da língua portuguesa: Vitorino Nemésio.
Nemésio de Némesis, “filha da Noite”, que é também personificação da indignação popular contra qualquer tipo de crime perverso. Nessa mesma mitologia grega, Némesis, numa fase posterior, foi considerada uma divindade que, invejosa da excessiva prosperidade, humilhava o orgulho humano. Como “humilhado” fica, esse orgulho humano que tanto dano nos causa, em “Mau Tempo no Canal”, obra de referência da literatura portuguesa do século XX, com uma clara dimensão universal, que Gonçalo Nemésio, neto do escritor, considera que se inspira no trabalho de Tolstoi e Dostoievsky.
Nemésio é também o nome do patrício romano que virou santo. E o Vitorino que seria escritor, por uma estranha coincidência, não só nasceria em dia de São Nemésio, a 19 de Dezembro de 1901, como morreria nessa mesma efeméride, só que dessa feita a 20 de Fevereiro de 1978, pois se trata de uma data móvel do calendário litúrgico.
Todas estas facetas da vida – a noite, a indignação, a religiosidade – encontramo-las na obra de Vitorino Nemésio, para muitos não mais que o rosto do programa televisivo “Se Bem Me Lembro”; para outros nem sequer isso, pois dele nunca ouviram falar, considerando-o, quem gosta ou aprendeu a gostar do açoriano, uma referência ímpar das nossas letras. Dele diria David Mourão Ferreira: «nasceu com um talento multiforme que daria, à vontade, para mais dez autores, e todos eles de primeira água».
Nemésio foi ficcionista, poeta, cronista, ensaísta, biógrafo, historiador da literatura e da cultura, jornalista, investigador, epistológrafo, filólogo e comunicador televisivo, para além de docente multidisciplinar.
Os mais velho bem se recordam do seu programa “Se Bem Me Lembro”. E de muito se lembrava aquele açoriano nascido na ilha da Terceira com o nome de Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva… Mas quem diria que semelhante talento literário, bem cedo demonstrado em diversas publicações periódicas e em livros, passara por vários problemas estudantis, inclusive a expulsão do liceu de Angra e a reprovação do quinto ano?
Açoriano de 13 gerações, ilhéu obcecado pelo mar – “Quando penso no mar, o mar regressa / A linha do horizonte é um fio de asas / E o corpo das águas é luar; / De puro esforço, as velas são memória / E o porto e as casas / Uma ruga de areia transitória.” – Nemésio trocou o arquipélago por Lisboa aos vinte e poucos anos e a ela voltaria «todos os verões, embora nunca ficasse muito tempo», como nos conta o neto Gonçalo, nascido no continente.
Nemésio, filho único, casou com Gabriela Monjardino de Azevedo Gomes, açoriana como ele, que lhe daria quatro filhos – duas raparigas, uma delas solteira e a outra viúva, ambas sem descendência; e dois rapazes, facto que inculcou no nosso interlocutor uma responsabilidade acrescida, tendo ele juntado ao clã três filhos.
Hoje, nos Açores, da reduzida prole do escritor, resta «o primo Jorge», que vive em São Miguel, «o único Nemésio que se manteve ilhéu».
Como poeta, Nemésio é identificado com a corrente filosófica existencialista, sendo apontado pela crítica “como o poeta português mais representativo deste século, depois de Fernando Pessoa”. Já como romancista, praticamente ficou-se pelo “Mau Tempo no Canal” – «morro autor de um romance único», dizia ele – que é um retrato fiel das coisas e das gentes simples, marcado por uma profunda humanidade, transmitido com uma “certa originalidade de escrita, sobretudo na descrição dos lugares e no desenho das personagens”, como escreveriam os críticos literários.
A cidade da Horta, em 1918, no fim da Primeira Guerra Mundial, tinha um comércio marítimo intenso e uma variada animação nocturna, sendo porto de escala obrigatório, onde se cruzavam ideias e ideais. O jovem Nemésio, sensibilizado pelas questões sociais, cedo abraçaria o pensamento republicano e até anarco-sindicalista. Na sua primeira viagem a Espanha trava conhecimento com o filósofo Miguel Unamuno, antifranquista assumido, com quem trocará correspondência anos mais tarde.
No epistolário de Unamuno, publicado pela Gulbenkian, existem várias cartas dirigidas a Vitorino Nemésio, tendo o açoriano trocado também correspondência com Ortega y Gasset.
Nemésio, como se sabe, era uma pessoa muito distraída (chegava a ir para a faculdade com duas gravatas postas), mas apenas das coisas superficiais. Estava sempre absorto em pensamentos e anotava tudo quanto lia à margem dos livros, a lápis, para não os estragar, realçando tudo o que lhe vinha à mente ou o que o impressionava.
Era também um bocadinho surdo, o que fazia com que se assustasse quando as pessoas se aproximavam, sobretudo se se tratava de crianças traquinas.
Discorria sobre assuntos. Começava em alhos e acabava em bugalhos. Assim eram as suas conversas, os seus livros e as suas aulas na faculdade. Embora escrevesse muitas coisas à mão, utilizava sobretudo a máquina de escrever.
Verdadeiro criador de géneros, recebeu em 1965 o Prémio Nacional da Literatura e, em 1974, o Prémio Montaigne. Se a sua obra merecia mais reconhecimento nos dias que correm? Sem sombra de dúvida que sim.
Joaquim Magalhães de Castro