Tensão social numa região geoestratégica.
O Xinjiang é uma região rica em petróleo e gás natural, e é, em pleno deserto de Taklamakan, nas imediações do lago de Lop Nur, que os chineses conduzem todos os seus testes nucleares. É, por isso, considerada uma zona de enorme importância geoestratégica. A animosidade entre chineses e uigures é mais óbvia aqui do que no Tibete entre chineses e tibetanos, pois são ainda mais gritantes as diferenças que separam comunidades “obrigadas” a viver em conjunto. A religião surge como principal factor de clivagem.
Antes das vagas migratórias de colonos chineses de etnia han, processo iniciado nos anos 50 do século passado, as minorias constituíam 80 por cento da população do Xinjiang, a “Nova Fronteira”, como a apelidaram os manchus. Hoje, a percentagem baixou para os 40 por cento e os uigures são agora uma minoria num território que é um terço da área total da China, com a população han a dominar a economia local e a estrutura do poder, se bem que, numa tentativa de equilibrar a balança, Hu Jintao, ex-Presidente da China e secretário-geral do Partido Comunista, tenha promovido dirigentes comunistas de etnia uigur (e também tibetana) a cargos no Governo Central. Elementos han mais radicais não hesitam em afirmar que «os uigures não têm cultura» e que têm «péssimos hábitos», acusando-os ainda de falta de honestidade, de serem arruaceiros e uns ingratos, por «ignorarem o desenvolvimento» que lhes trouxe a China. Mas a que preço chegou esse desenvolvimento?
Encontramos a resposta se recuarmos no tempo duas décadas, aquando da implementação da política reformista de Deng Xiaoping. Em nome do progresso, descaracterizaram-se as cidades do Xinjiang, marcadas pelos seus edifícios públicos construídos nos anos 50 pelos soviéticos, pintados com cores garridas e decorados a gesso, que, num repente, foram considerados obsoletos e sistematicamente demolidos. Em nome da “higiene urbana”, foram arrasados muitos dos mercados tradicionais, palco de práticas ancestrais na Rota da Seda. O de Kashgar, por exemplo, tinha mais de dois mil anos.
Além do mercado, centenas de belos e coloridos edifícios neoclássicos, onde funcionavam hotéis, teatros, escolas e outras instituições públicas, foram literalmente arrasados para dar lugar a edifícios de construção duvidosa e avenidas largas que desvirtuaram o traçado arquitectónico tradicional das cidades. E tudo foi feito sem qualquer consulta à população directamente afectada. Resistiram os bairros uigures, mas não em todas as cidades. Urumqi, capital da província, por exemplo, não se diferencia em nada das restantes urbes chinesas.
As zonas rurais, na sua essência, escaparam também a essa “Revolução Cultural revisitada”, ocorrida em finais de anos 80 e ao longo da década de 90 do século passado. Aqui, pouco ou nada se faz sentir o fluxo migratório dos han, e assistiu-se até a um crescimento demográfico que pôs em risco os recursos locais, pois no campo não era aplicada a política de filho único imposta nos centros urbanos. O uso de drogas duras aumentou significativamente entre os mais jovens, assim como o número de casos de SIDA, sem que o Governo local tomasse medidas conformes à gravidade do problema.
A decisão do Governo Central de demolir o centro histórico da capital cultural do uigures, ou seja, Kashgar – “o mais bem preservado exemplo de uma cidade islâmica da Ásia Central”, nas palavras do arquitecto e historiador George Michell, citado pelo The New York Times – gerou uma onda de protestos com repercussões internacionais.
O plano de realojamento da população foi gigantesco e previu a mudança de 65 mil famílias, cerca de 220 mil pessoas, para zonas residenciais construídas de raiz. A oferta de casas novas era tentadora e muitos foram os uigures apoiantes dessa operação.
Uma pequeníssima área da cidade foi preservada, tendo em vista futuras visitas turísticas. Aconteceu exactamente o mesmo com os hutongs, os bairros tradicionais de Pequim, sacrificados em nome de uma moderna e asséptica anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2008. Apenas um desses bairros sobreviveu, para turista ver.
Os trabalhos de demolição – nos quais foram gastos 440 milhões de yuans – ocorreram ao longo de três anos. Abrindo as hostilidades, uma reputada escola corânica foi o primeiro edifício a ser arrasado, apesar de estar classificada como monumento histórico. Datava do século XVI e nela terá estudado o poeta e escritor Mahumud Al Kashgari, referência maior da intelectualidade uigur.
Curiosamente, quem chamou mais a atenção para o irremediável desaparecimento desse património único foram os próprios chineses han. O Beijing Cultural Heritage Protection Center foi o primeiro a lançar um pungente apelo para tentar salvar a cidade de Kashgar, considerando-a bem mais relevante que os bairros tradicionais da capital ou até de Lhasa, a cidade santa do Tibete. A esse respeito, houve quem, pessimista, comentasse: «Se eles próprios não conseguiram salvar o património da sua cidade, duvido que consigam fazê-lo neste caso». Considerava-se estranho que uma cidade com tão grande importância histórica e arquitectónica não usufruísse já do estatuto de Património da Humanidade, e talvez por isso, alguém lançou no espaço cibernético a seguinte questão: “Será que a imediata integração de Kashgar na lista do Património da Humanidade poderá impedir a sua destruição?” Também no ciberespaço circulava uma petição enviada a Cai Wu, o ministro da Cultura da República Popular da China, e que recolheu pouco mais de uma centena de assinaturas.
Como se constata, mais do que a expressão de um movimento com aspirações autonomistas, a revolta dos uigures prende-se com o que classificam e consideram de “atitudes discriminatórias” e ataque à sua “identidade cultural e religiosa”. O impedimento de jejuar durante o Ramadão e a proibição de acesso às mesquitas a jovens com menos de dezoito anos, assim como do uso de barba comprida e de lenços na cabeça a quem desempenhe cargos na Função Púbica, eram alguns exemplos apontados como “atentatórios da identidade cultural dos uigures”. Que também se queixavam da “escassa publicação de livros” no seu idioma e do facto de “a instrução escolar ser ministrada em Mandarim”.
Porém, a causa dos uigures (e quem diz uigures, diz cazaques, quirguizes, tajiques e outras etnias dessa imensa província) peca pela falta de mediatismo na arena mundial. Wuer Kaixi, um dos estudantes revoltosos de Tiananmen, uigur de nascimento, poderia ser um trunfo, não fosse o caso de o dissidente nunca ter demonstrado qualquer interesse por essa matéria. Antes pelo contrário. Exilado em Taiwan, Kaixi parece perfeitamente integrado na comunidade han e planeava até entrar na política activa da ilha nacionalista. A integração foi, aliás, o caminho seguido pelos uigures mais pragmáticos, que podemos encontrar por toda a China, envolvidos em diferentes tipos de negócio, lícitos ou não. Eles veem a integração na cultura dominante han como um caminho certo para o sucesso. Mas também há quem tenha aprendido a conviver pacificamente com os han, sem nunca terem abdicado das suas tradições. E esses constituem a esmagadora maioria da população no Xinjiang.
Joaquim Magalhães de Castro