A santidade ou perfeição cristã é a perfeição da caridade, que é a virtude e a forma de todas as virtudes – A vida espiritual, diz-nos São Tomás de Aquino, consiste nisto. A perfeição pura e simples da vida espiritual é a da caridade. Sem caridade, nada o é espiritualmente (“Sobre a Perfeição da Vida Espiritual”). Portanto, o grau de caridade na nossa vida marca o grau de perfeição dos iniciantes, dos avançados e dos perfeitos. Os iniciantes na jornada lutam contra o pecado e os pecadores; os avançados praticam as virtudes, acima de tudo, o amor; os perfeitos vivem imersos na contemplação amorosa de Deus, Uno e Trino.
O amor ao próximo representa um lado do amor. O outro – e mais fundamental – é o amor a Deus. Ambos são um só amor; eles se fertilizam mutuamente. Quando um cresce, o outro também cresce. Adoro o Círculo do Amor de São Doroteu de Gaza (Século VI). O mundo é um círculo e no centro do círculo está Deus. Os raios que vão para o centro representam as diferentes maneiras como os homens e as mulheres vivem as suas vidas – longe ou perto de Deus e do próximo. Quanto mais perto se está de Deus, mais perto se está do próximo; e, vice-versa: quanto mais perto se está do próximo, mais perto se está de Deus (ver as suas “Instruções Espirituais”).
Na excelente Exortação Apostólica Vita Consecrata (1996), São João Paulo II fala de três características da vida consagrada: primeiro, Confessio Trinitatis (Confissão da Trindade); segundo, Signum Fraternitatis (Sinal da Fraternidade); e terceiro, Servitium Caritatirs (Serviço da Caridade). Expressa-o de forma belíssima na sua “Ecclesia in Asia”: “A busca de Deus, a vida de comunhão e o serviço aos outros são as três características principais da vida consagrada, que pode oferecer um testemunho cristão atraente aos povos da Ásia actual”. Na verdade, estas são três qualidades da verdadeira vida cristã, da vida de todos os cristãos.
Numa tarde de sexta-feira, Linus deseja ao seu amigo Charlie Brown, da maravilhosa família “Peanuts”: «– Tenha um bom fim de semana». O menino de cabeça redonda, o gentil dono do Snoopy, responde-lhe: «– Obrigado» e, pensativo, pergunta a Linus, o menino com o cobertor de segurança: «– A propósito, o que é a felicidade? A propósito, o que é a misericórdia?».
A misericórdia é “o coração compassivo do homem pela infelicidade do outro” (São Tomás de Aquino, “Suma Teológica”) – A misericórdia pode ser uma mera emoção ou paixão do apetite sensorial ou uma virtude do apetite intelectual, da vontade. Se a compaixão é apenas uma paixão dos sentidos diante da miséria do outro, então não é uma virtude, mas uma paixão, um sentimento ou uma emoção que nada faz para aliviar o sofrimento do próximo. Se não é apenas um instinto natural diante do sofrimento, mas um movimento consciente e livre da vontade guiado pela razão, despertado pelo sofrimento de outra pessoa e que leva a fazer algo positivo em relação a esse sofrimento, então é a virtude da misericórdia: misericórdia afectiva e eficaz.
A virtude da misericórdia está profundamente ligada à virtude da caridade, que é o amor a Deus e ao próximo, a virtude acima de todas as outras (cf. Catecismo da Igreja Católica n.º 25), sua “mãe” e coordenadora. A misericórdia, refere João Paulo II, tem “a forma interior” do amor chamado ágape (Dives in Misericordia n.º 6). Dom de Deus, a caridade é alegre, pacífica e misericordiosa. A misericórdia é um «fruto» da caridade (cf. Gal., 5, 22-23), um efeito interno da caridade como amor ao próximo necessitado.
A misericórdia ou compaixão é um valor ético importante não só para os cristãos, mas também para os budistas, muçulmanos e filósofos, como Cícero, Confúcio e Albert Camus. Entre todas as virtudes relacionadas com o próximo, a misericórdia é a virtude mais elevada (São Tomás de Aquino). Li na camisa azul que um dos meus alunos vestia: “A misericórdia começa comigo”. A rigor, a misericórdia é para com os outros, embora também possamos dizer que a misericórdia – como a caridade – começa comigo, mas não termina aí! A misericórdia é compaixão pela miséria do outro, “compassio miseriae alterius” (“Suma Teológica”). Para os cristãos, “a misericórdia é a essência do Evangelho e a chave da vida cristã” (Cardeal D. Walter Kasper). A misericórdia inclui não só a misericórdia material, mas também a espiritual, que se concentra em perdoar as ofensas dos outros e rezar por eles.
A virtude humana da misericórdia pode ser adquirida através da repetição de actos compassivos de amor e das obras de misericórdia corporais e espirituais. (A propósito, a misericórdia e a compaixão são usadas de forma intercambiável). Por exemplo, no “Miserere”: “Tem misericórdia de mim, Deus, na tua bondade. Na tua compaixão, apaga a minha ofensa” – Salmo 51, 1; Salmo 86, 15. Os Padres da Igreja falam da misericórdia divina – o perdão – e da misericórdia humana – ajudar os necessitados. Hoje em dia, a misericórdia é geralmente descrita como “uma emoção que nos leva à piedade, à compreensão e ao perdão das ofensas dos outros”. Como nos ensina o Papa Francisco, a misericórdia refere-se mais ao perdão divino, enquanto a compaixão refere-se à simpatia humana pelos necessitados.
A misericórdia para com os necessitados (misericordia), a compaixão (cum passione) ou a simpatia, ou seja, a paixão pelos que sofrem, opõem-se à apatia e à antipatia. A apatia é a indiferença para com o sofrimento dos outros. A antipatia é uma atitude de aversão, se não de condenação, em relação a alguns outros, como os pobres, os incultos, os refugiados, os migrantes, as mulheres, os idosos e as crianças. A empatia, além disso, é mais ampla do que a compaixão, pois coloca o empático no lugar dos outros – não apenas dos necessitados (compaixão), mas também dos felizes (ver Rm., 12, 15). Harper Lee, considerada a apóstola da empatia por Michel Gerson, no seu aclamado romance “To Kill a Mockingbird”, fala através de Atticus: «– Nunca se compreende realmente uma pessoa até se considerar as coisas do seu ponto de vista… até se entrar na sua pele e andar com ela».
A verdadeira compaixão implica, então, ser comovido pelo sofrimento do próximo e fazer algo de bom a respeito, enquanto a falsa compaixão, ou pseudo-misericórdia, ou eutanásia, é acabar com a vida do nosso próximo – seja proibir uma criança de nascer, por meio do aborto, ou terminar com a vida de um doente terminal ou de um idoso dependente, recorrendo à eutanásia e ao suicídio assistido. São João Paulo II escreve: “A verdadeira compaixão leva a partilhar a dor do outro; não mata a pessoa cujo sofrimento não podemos suportar”. Estar no lugar do outro é estar perto das vítimas da pobreza, da injustiça e da violência.
Somos, pois, obrigados a fazer algo por todos os necessitados que encontramos na nossa jornada diária de vida? Ninguém pode ajudar todas as pessoas necessitadas e, portanto, não somos obrigados. Contudo, como afirma São Tomás de Aquino, somos obrigados a ajudar quem está em necessidade urgente.
Santa Faustina fala de três graus de misericórdia: o primeiro é o próprio acto de misericórdia; o segundo é a palavra de misericórdia; e o terceiro a oração. Escreve a Santa: “Se não posso mostrar misericórdia com as minhas acções ou palavras, posso sempre fazê-lo com a oração”. A verdadeira oração leva-nos necessariamente à prática das obras de misericórdia, incluindo a última obra espiritual: rezar pelos vivos e pelos mortos.
Pe. Fausto Gomez, OP

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