Superficialidade e descuido são a raiz de muitos males
«Não penseis que vim destruir a Lei ou os Profetas. Eu não vim para anular, mas para cumprir. Digo a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra» (Mt., 5, 17-18).
Nestes dias tenho rezado por uma pessoa que dentro em breve será condenada por um crime financeiro. Entendo perfeitamente a angústia da família que espera que a pessoa em causa fique na prisão por tempo alargado – já eu espero que apenas por alguns anos. A Lei é igual para todos e devemos arcar com as consequências das nossas escolhas. Ao mesmo tempo, percebemos que embora as leis e as medidas de punição sejam necessárias para a boa convivência social, não são suficientes para criar sociedades justas e pacíficas. Há algo para além da Lei que é necessário para que a Lei seja eficiente. O mesmo é verdade quanto à Lei de Deus.
A relação de Jesus com a Lei era complexa. Como israelita, tinha o dever de observar as leis religiosas na íntegra. No entanto, sempre criticou a redução das leis a uma “casuística hipócrita” que não respeitava o espírito da própria Lei. É por isso que no Evangelho deste Domingo (Mt., 5, 17-37) Jesus afirma: «Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, nunca entrareis no reino dos céus». Os escribas ensinavam a Lei, mas eram negligentes em praticá-la; os fariseus observavam a Lei com rigidez, mas negligenciavam o seu espírito. Jesus, por outro lado, com as Suas palavras e acções, vida e morte, cumpriu a Lei ao unir perfeitamente a Justiça e a Misericórdia. Para nós, seres humanos, esse equilíbrio é muito difícil de ser alcançado e tendemos a oscilar entre os dois opostos, mais do que a integrá-los.
“Na justiça de Deus também há graça”, refere o Papa Bento XVI na Carta Encíclica Spe Salvi: “Isto podemos sabê-lo fixando o olhar em Cristo crucificado e ressuscitado. Ambas – justiça e graça – devem ser vistas na sua justa ligação interior. A graça não exclui a justiça. Não muda a injustiça em direito. Não é uma esponja que apaga tudo, de modo que tudo quanto se fez na terra termine por ter o mesmo valor. […] No banquete, eterno, não se sentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido” (Spe Salvi44).
Se Deus fosse apenas misericordioso, mas ausente de justiça, significaria que as nossas acções e escolhas não importariam. Se não formos responsáveis pelas consequências das nossas acções, então o sentido de identidade e o valor da nossa existência serão destruídos. O que nos torna verdadeiramente humanos é a liberdade e a responsabilidade: só através destas é que as nossas escolhas ganham sentido.
Pelo contrário, se Deus fosse apenas justo, mas não misericordioso, viveríamos oprimidos com um eterno sentimento de culpa, e com medo e desespero, pois sabemos que ninguém poderia ser totalmente inocente aos olhos de Deus. Acontece que o Seu amor é mais forte do que os nossos pecados: «Se, entretanto, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente por nossas ofensas pessoais, mas pelos pecados de todo o mundo. Em Cristo e separados do mundo» (1 Jo., 2, 1-2).
Embora salvos pela misericórdia de Deus, ainda somos responsáveis pelas nossas acções: precisamos corrigir os nossos erros, restaurar a justiça e reparar relacionamentos rompidos antes de entrarmos no Reino dos Céus.
Muitas vezes luto para manter a justiça e a misericórdia unidas, principalmente porque muitas vezes negligencio a oração quando encontro um problema e tento, ao invés, encontrar as minhas próprias soluções. A capacidade de cumprir a Lei de Deus não vem apenas do conhecimento dos princípios morais, mas principalmente de deixar o Espírito Santo nos guiar em qualquer situação particular e dar-nos forças para vivermos pacientemente com as consequências das nossas escolhas, aprendendo com os nossos erros quando necessário. Exige a humildade de escutar Deus, que fala na própria consciência e também no Magistério da Igreja, onde a voz de Cristo continua a anunciar a verdade do Evangelho.
Por outras palavras, tal requer discernimento, que é a disciplina de prestarmos atenção às nossas acções, palavras, atitudes e escolhas, mesmo que sejam pequenas como um “jota” (o menor traço de uma letra, nas palavras de Jesus), porque é por meio delas que Deus nos conduz à plenitude da vida que Ele nos prometeu; onde «o amor e a fidelidade se encontrarão, e a justiça e a paz se irão beijar» (Sl., 85, 10). Superficialidade e descuido, mais do que a maldade, são a raiz de muitos males.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ