«Não existe coisa mais triste que uma comunidade que não canta»
O Coro da Capela Sistina é um dos mais antigos do mundo e desde Janeiro do ano passado faz parte integrante do serviço das celebrações litúrgicas do Papa. O monsenhor Marcos Pavan foi nomeado em Novembro de 2020 director da Capela Musical Pontifícia. Nesta entrevista, o sacerdote brasileiro defende a importância da música na liturgia e na vida comunitária.
FAMÍLIA CRISTÖ Como é que a música se cruzou na sua vida?
MONSENHOR MARCOS PAVAN– Eu tive a sorte de ser musicalizado já na Escola Primária, onde estudava em São Paulo, no Brasil. Desde os sete anos já cantava num grupo coral de crianças na minha escola. A paixão continuou. Comecei a tocar piano, teoria musical e depois, no liceu, fui estudar com os padres beneditinos. Aí conheci o canto gregoriano. Fiquei apaixonado pelo canto gregoriano, comecei a estudá-lo. E depois veio o ministério.
F.C.– E como veio para Roma?
M.M.P.– Quem me trouxe aqui foi a Providência, Eu vim a Roma para estudar Filosofia e Teologia, fazer os estudos seminarísticos. Eu no Brasil tinha estudado Direito. Quando terminei os estudos, estava a especializar-me em Direito Canónico, houve a necessidade de encontrar um maestro para as vozes brancas [crianças] do coro aqui da Capela Sistina, e como eu tinha muita experiência de canto, de canto gregoriano, e já colaborava no escritório das celebrações litúrgicas do Papa, pediram-me que eu ficasse a preparar as crianças, pelo menos para o Jubileu do Ano 2000. Eu comecei em 1998. Fiquei até ao ano 2000. Pediram-me que continuasse e fiquei até ao ano passado, quando o Santo Padre me nomeou maestro director do coro. Mas são 23 anos que estou a trabalhar aqui.
F.C.– Assumimos muitas vezes o património como algo apenas que se pode tocar. Mas a música constitui um património próprio, não é?
M.M.P.– O Concílio Vaticano II, que deve ser o farol para todos nós agora nessa actualização da reforma litúrgica, diz que o canto próprio da Igreja de rito latino é o canto gregoriano. Em segundo lugar, a polifonia sacra do Século XVI, aquela que conhecemos como Palestrina, Victoria, tudo isso. Logicamente os modelos não são só para imitar, mas para nos inspirar no momento de novas composições. No nosso caso, continuamos a cantar o canto gregoriano, continuamos a fazer a polifonia clássica. Mas, obviamente, em alguns momentos em que é mais apropriado. Essas duas formas têm o limite que é: devem ser em Latim. Nas celebrações, deve haver um lugar privilegiado também à língua vernácula. Porém, o gregoriano e a polifonia têm características espirituais e musicais que podem inspirar novas formas musicais para a actuação da reforma litúrgica.
F.C.– Quando falamos do uso da música na liturgia, às vezes, parece que estamos a falar de coisas sobrepostas. Há a celebração e a determinada altura surge a música. O Concílio entende a música na liturgia de outra forma.
M.M.P.– Lógico. A liturgia é cantada. A liturgia católica, como a liturgia oriental, nasce como uma liturgia cantada, Ela funda as raízes na liturgia da sinagoga. Penso que Nosso Senhor cantou a oração de agradecimento, que depois vai desembocar na nossa oração eucarística no prefácio. A nossa liturgia nasce como canto, porque todos os povos antigos reconhecem o canto como uma forma privilegiada de, em primeiro lugar, unificar a pessoa: emoção, sentimento, razão, corpo e espírito porque o canto também envolve a participação cultural. O homem é uma unidade. Não é uma dicotomia corpo e alma. E a liturgia católica nunca fez excepção. No início, os Padres da Igreja tiveram um pouquinho de preocupação. Tiveram medo que com a música chegasse também alguma influência pagã. Mas logo essa influência foi superada, porque viu-se que a música é parte integrante da celebração, A primeira coisa é que se canta a liturgia. A começar pelo celebrante, que devia cantar sobretudo as partes principais da missa nas celebrações mais solenes. Depois todos os sujeitos envolvidos na celebração, a assembleia, o coro, os outros ministros, cada um tem o seu lugar e o seu momento. Mas devia começar pelo próprio celebrante.
F.C.– Para envolver a comunidade?
M.M.P.– Lógico, porque faz parte da linguagem da liturgia, que é a linguagem do simbólico. A música ajuda nessa unidade da pessoa humana, corpo e alma e na unidade com Deus, na liturgia. A música – não posso dizer que ela é da essência da liturgia no sentido de dizer que se não há música não há liturgia – é insubstituível. Quando não há música não há nada que a substitua.
F.C.– Nos últimos meses, a pandemia teve um grande impacto nas nossas celebrações comunitárias, desde o limite nas celebrações às mudanças quando elas voltaram a ser possíveis. Isso também teve impacto na música na liturgia?
M.M.P.– Para nós tiveram um impacto muito grande. A Itália foi o país que primeiro sofreu todos esses problemas da pandemia aqui na Europa. O nosso coro é composto de adultos e meninos, que são a secção de vozes brancas, e as escolas foram fechadas de um dia para o outro em Março de 2020. Então não vimos as nossas crianças nunca mais. Os ensaios de canto não podiam ser feitos. As celebrações do Santo Padre foram suspensas, como todas as outras. Quando voltaram as celebrações na Basílica de São Pedro, voltámos com um coro com apenas oito cantores adultos separados dois metros um do outro. Mesmo assim não foi fácil.
F.C.– Retomar o trabalho normal e as celebrações foi sinal de esperança para as comunidades?
M.M.P.– É muito difícil ser cristão sozinho. Aliás, é impossível. Até os eremitas estão em contacto com a Igreja. Mas os eremitas têm uma vocação particular de viver essa comunhão na solidão. Quem não tem essa vocação particular sente falta da comunidade. Não é possível viver sem comunidade cristã. Não existe coisa mais triste que é uma comunidade que não canta. Não só na Igreja, mas em qualquer lugar. Faz parte. Os países têm os seus hinos nacionais. As escolas têm os seus cantos. E a Igreja tem a sua liturgia cantada. Espero que as pessoas tenham sentido essa falta e que agora, voltando, se deem conta de como é importante participar, cantando, preparando bem a liturgia. É muito triste ter de ficar isolado dos irmãos durante tanto tempo.
F.C.– Em Portugal, temos sempre o prazer de ouvir nas celebrações do Vaticano do dia de Natal o Adeste fideles, também chamado Hino Português, que há quem atribua ao rei D. João IV. É uma obra que marca uma memória e assinala estarmos mesmo a celebrar o Natal.
M.M.P.– Adeste fidelesestá no inconsciente de todos aqui no Ocidente. É sinónimo de Natal. Repito: nós temos de evitar os extremos. Quem quer mudar tudo e começar ex novo… Isso não é evolução. É um corte radical. Então vai afundar as raízes onde? Nós temos raízes. Para que a planta cresça verde e frondosa as raízes também têm de ser sãs. Então, com equilíbrio e muito bom senso, nós temos de manter o que temos de melhor na tradição, apresentá-lo nos momentos certos. No momento certo da missa, no momento certo do ano litúrgico. A partir daí, também apresentar coisas novas. Logicamente que quando a polifonia apareceu era uma novidade. Não podemos ser fechados às novidades. Agora: ela apareceu fazendo polifonia sobre o quê? Sobre os temas gregorianos. É dessa continuidade que vem tanta qualidade. Começar do zero não existe. É preciso conhecer a tradição, valorizar a tradição e a partir disso partir para o novo também.
F.C.– No Vaticano não vemos violas, djembê. Porque é que não vemos? Poderíamos ver? Ou não interessam à liturgia?
M.M.P.– Na questão dos instrumentos, diz o Concílio, o primeiro lugar é o órgão de tubos. A liturgia tem de ser encarnada na comunidade. Eu venho de uma diocese no Brasil, que é na periferia de São Paulo, que tem três milhões de pessoas e não tem nenhum órgão de tubos. Para começar é logo impossível tocar órgão de tubos. Algumas igrejas têm órgão electrónico. Todas as outras usam violão e essas coisas. Não é nem sequer uma questão de escolha. É uma questão de necessidade. A liturgia do Papa é uma outra coisa. Temos outros meios, outra tradição, tudo isso. Mas isso não quer dizer excluir nada. Porque um violão bem tocado pode ser muito bonito. Pode até lembrar os instrumentos… O rei David não tocava a lira? Isso não quer dizer nada. É como se toca. A pessoa está preparada? Sabe música, tem bom gosto? O órgão de tubos mal tocado também é insuportável. Se a pessoa quer fazer música, deve fazer com amor, bem feito, deve preparar-se. Não deve ser uma coisa improvisada na comunidade.
F.C.– Muitas vezes, temos a animação na liturgia como uma coisa deixada para último.
M.M.P.– Exacto. Isso é errado. A preparação da liturgia entra no coração da comunidade cristã. O Concílio Vaticano II diz que a Eucaristia é o cume, o ápice e a fonte da vida cristã, e nesse ápice e fonte estão a liturgia e a música litúrgica. Não pode ser um lugar secundário. Tem de ser um lugar central. Mas tem de ser preparado. Os senhores bispos, os senhores padres, têm que se preocupar também com a formação musical dos seus fiéis. Escolas diocesanas de música sacra… Isso é muito importante. Agora no Brasil tenho notícia que estão a aparecer essas escolas. A preparação é essencial. Ninguém vai pôr alguém a ler que não sabe ler ou que gagueja. Porque é que tem de pôr a cantar alguém que não sabe cantar? Tudo tem de ser uma questão de bom senso. Se é uma comunidade que tem muito boa vontade, mas não há ninguém que consiga fazer melhor, então a coisa já está resolvida. Mas se é possível melhorar, se é possível educar… a música também é uma forma de educar. Nós temos aqui uma escola com sessenta meninos. A música educa não só do ponto de vista cristão mas também humano, o esforço, a disciplina. Tanto assim é que a música faz parte da educação desde a cultura e educação clássica, no Trivium [forma de educação da Antiguidade Clássica com gregos e romanos] havia música. A música educa o ser humano. Também nas comunidades cristãs deveria haver uma atenção à preparação dos agentes da música.
Esta entrevista foi realizada no âmbito de uma parceria estabelecida entre a Família Cristã a Agência Ecclesia, o Diário do Minho e a Associação de Imprensa Cristã.
RICARDO PERNA
Família Cristã
CAIXA
Um dos mais antigos coros do mundo
De acordo com informação na página de Internet do Coro da Capela Sistina, a Schola Cantorumromana terá sido organizada por São Gregório Magno, que se tornou Papa em 590. Em 1471, o Papa Sisto IV reorganiza o Colégio dos Cantores Papais: a Capela Musical Pontifícia torna-se o coro pessoal do Papa e passa a ser chamada de Capela Sistina. O nome assume dupla razão: homenagem ao Papa Sisto e o local onde habitualmente o coro cantava, a Capela Sistina. Durante o Renascimento, foram cantores da Capela Sistina Giovanni Pierluigi da Palestrina, Luca Marenzio, Morales, Costanzo Festa, Josquin de Prés e Arkadelt, grandes compositores da época.
Actualmente, o coro é composto por vinte cantores adultos e cerca de 35 meninos. Em 1963 foi criada uma escola para eles, onde têm instrução vocal e musical, além das horas normais de aulas. A entrada é feita por audição.
Além de participar nas celebrações papais no Vaticano, o coro da Capela Sistina actua em todo o mundo.
Em Janeiro de 2019, o Papa Francisco, no Motu Propriopara inserir a Capela Sistina no Ofício das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice, escreveu que «desde a sua antiga fundação» a Pontifícia Capela Musical tem brilhado na história «como um lugar alto de expressão artística e litúrgica ao serviço das solenes celebrações dos Papas». Por isso, o Papa queria encorajar a «custódia» e a «promoção do prestigioso património artístico e musical produzido ao longo dos séculos pela própria Capela».
Cláudia Sebastião