O delta visto de cima
É meu objectivo prosseguir por terra até Mrauk U, porém, e por incrível que pareça, ninguém é capaz de me dar informações fidedignas acerca do transporte, pois a esmagadora maioria dos estrangeiros, e até a gente local, desloca-se ao norte da província por via aérea. A estrada é acidentada mesmo em tempo seco (na época das chuvas, então, é para esquecer) e propensa a ataques de guerrilhas independentistas; garantem uns, desvalorizam outros.
Se bem que estejamos longe do assombroso número de grupos armados das décadas precedentes, representantes de etnias, religiões ou ramificações do antigo Partido Comunista Birmanês, hoje desactivadas ou extintas, subsistem alguns grupos activos. No Arracão, por exemplo, kahins, chins e kachins contam com pequenas guerrilhas próprias e um exército comum com mais de sete mil homens sedeado em Laizo, povoação fronteiriça com a China, e que integra a denominada Aliança do Norte, alegadamente financiada por aquele país. Reivindicam os ditos grupos, activos nas zonas montanhosas e ao longo da fronteira com o Bangladesh, separatismos étnicos e federalismos vários, embora no fundo ocultem obscuros interesses de vária ordem, inclusive o apetecível e muito rentável cultivo das papoilas do ópio.
Também actuante na fronteira banglo-birmanesa temos a ARSA, exército dos rohingya, apenas com três centenas de soldados e uma sede móvel. Esta nómada e inesperada actividade de uns e outros obriga a uma presença contínua do exército birmanês nas montanhas, surtos da sua força aérea e permanente patrulhas marítima.
Como dizia, após receber informações contraditórias sobre as condições da estrada e a duração da viagem em si, assim como a descontinuação do habitual transporte fluvial entre Toungup e Sittwe – interessante trajecto que conduzia os passageiros pelo rio homónimo até à sua foz e depois por meandros vários, atravessando a enorme ilha de Ramree, até à actual capital da província – acabo por decidir pelo avião. Até porque essa escolha me proporcionará um olhar de águia sobre a costa arracanesa, ideal para tentar perceber como se movimentavam os portugueses nos séculos em que por aqui formigavam dando cartas em diversos domínios.
No aeródromo de Thandwe tenho o raro privilégio de poder aceder a um terraço para assistir à aterrissagem das aeronaves antes de chegar à minha vez. Apercebo-me das companhias aéreas para vários gostos, desde as enigmáticas com os acrónimos FMI e KBZ (esta última é antes de mais um banco) às directamente identificadas, como é caso da Golden Myanmar Airlines onde tenho lugar marcado.
Já no ar, enquanto folheio distraidamente a revista de bordo com o paternalista e sibilino rosto de Xi Jiping a ocupar toda a capa – o que diz bastante quanto à natureza dos quinze investidores dessa pequena companhia aérea –, tenho a oportunidade única para apreciar os meandros do Sandoway, seus efluentes e afluentes, quais veios de folhas de couve, e depois ilhotas e um fértil escorrer de praias virgens. Em breve surge bem definida a ilha de Ramree, que já foi distrito independente, e as promissores praias de areia branca da costa em frente. Na Segunda Guerra Mundial, inícios de 1945, ali foi travada feroz batalha entre britânicos e nipónicos. No final, os soldados japoneses seriam forçados a entrar numa zona pantanosa infestada com crocodilos de água salgada. Várias centenas foram devorados – diz a lenda –, o que deu direito a entrada no Livro de Recordes do Guinness na categoria de “o maior desastre sofrido por humanos perante um ataque de animais”. Na realidade, terão sido tragados pelas vorazes sáurios dez a quinze homens, tendo o resto perecido por diversos outros motivos: desidratação, afogamento, balas inimigas, disenteria, e é provável até que um ou outro tenha servido de repasto aos tubarões.
Do porto de águas profundas de Kyaukphyu flui em estanques condutas, desde 2014, o gás da costa arracanesa até à província chinesa de Yunnan, reduzindo em duas semanas o tempo potencial de transporte marítimo. Além da venda do gás natural, Rangum lucra ainda com as taxas de transporte.
Com as manobras de aproximação à pista torna-se bem visível o intrincado delta do Kaledan, na verdade, a soma de vários rios. A estas turvas águas aportaria, em 1516, uma nau portuguesa vinda do porto de Pasai, Samatra, e dois anos depois a primeira missão oficial encabeçada por Dom João da Silveira desembarcava algures no estuário do rio Mayu. Esse seria o sinal de partida para um profundo envolvimento dos portugueses no comércio e na política territorial de todo o sul de Bengala e do Arracão. Quando chegaram a Chatigão, e porque traziam consigo uma generosa recompensa dos arracaneses, seriam acusados, os homens de Silveira, de pirataria e mantidos ao largo, sendo obrigados a passar aí a difícil época das monções.
Bem cedo se aperceberiam os arracaneses dos benefícios potenciais de uma aliança com os portugueses, e lestos foram, por isso, em pedir-lhes ajuda para recuperar Chatigão do sultanato de Bengala, sedeado em Gaur; isto, se dermos crédito a uma missiva de João de Lima, um dos capitães portugueses que na época por ali andou. Também numa carta ao rei de Portugal, um dos monarcas locais, provavelmente Sajata, mencionava a visita de João da Silveira e prometia aos portugueses todo tipo de assistência caso quisessem negociar nos seus domínios. É claro que queriam.
Joaquim Magalhães de Castro