As novas avenidas da cidade

VATICANO E O MUNDO

As novas avenidas da cidade

São avenidas digitais, tranquilizem-se! Não, não venho propor nenhuma adenda ao plano urbano que acrescente novos NAPEs ou ZAPEs à estrutura urbana da nossa cidade, já tão densa, nem sequer esta reflexão se reporta exclusivamente a Macau, hoje um ponto ínfimo na floresta labiríntica da aldeia digital global.

Porque, repito, à aldeia digital global, essa sim, me vou referir, ligada às transformações de rotinas sociais operadas pela pandemia do Covid-19 e de cujas amplitude e consequências iremos tendo consciência, com o passar do tempo.

O chamado confinamento forçado não teve e não está a ter efeitos nulos nas vidas de indivíduos e de grupos, antes pelo contrário. A medida, tida geralmente por essencial para suster a propagação do vírus, está a mudar rotinas, está a alterar comportamentos, mas é recebida de forma muito variável nos diversos contextos culturais, desde a aceitação resignada nuns casos, à recusa peremptória noutros, assimilando nestes últimos o constrangimento físico à violação, pelas respectivas autoridades, de direito fundamental, exactamente o da liberdade individual.

Vendo a situação de país para país, facilmente chegamos à conclusão de que muita da percepção sobre o confinamento, assumida pelas comunidades, é fruto da forma como os líderes políticos foram pedagógicos ou o oposto na formação de opiniões públicas (des)favoráveis à auto-contenção. Quem quis privilegiar ganhos políticos duvidosos e incentivou as suas comunidades à indisciplina, está hoje num pódio ou num quadro de (des)onra, quanto a estatísticas de mortalidade e percentagem de contaminados onde por certo não quereria estar…

De qualquer modo, com o isolamento obrigatório ou por precaução generalizada, a Internet passou a constituir veículo ou instrumento de uma multiplicidade de funções no dia-a-dia, desde o trabalho permanente em casa, já aceite e adoptado por muitas empresas, às consultas de telemedicina, ao ensino à distância, às teleconferências, práticas que só de forma hesitante ou residual eram ensaiadas até aqui.

ESTAR EM IGREJA

Internet: rezar individualmente, em grupo restrito ou em comunidade “online” – foi das dimensões mais interessantes do novo fenómeno. Rezar através do telemóvel ou do “tablet”. Assistir à missa acedendo ao “site” da paróquia ou da basílica… e do próprio Vaticano, a sede do Cristianismo Católico.

E desde então o nosso relacionamento com Deus e com os outros (e com estes tendo como centro Deus) passou a conhecer novas formas que é interessante analisar.

Prevendo estas mudanças, dizia o Papa Francisco numa das suas homílias diárias de Santa Marta, na fase aguda do confinamento, que não há Igreja sem comunidade viva; e que era preciso não confundir uma medida de excepção (o ser obrigado ao recolhimento em casa) a algo que viesse a passar por nova regra (a das igrejas vazias, transferidas para as salas de estar domésticas, em torno do computador).

Há dias, para exemplificar a expressão máxima do novo fenómeno religioso via Internet, o Santuário de Lourdes organizou uma peregrinação mundial “online”! A primeira na História da Igreja!

CONQUISTAR UMA TERRA “DE NINGUÉM”

A Internet foi um campo de evangelização a que a Igreja, no seu conjunto, reagiu tarde e de forma algo desorganizada, digamos: sem estratégia. E se reagiu foi mais ao sabor dos golpes que recebia de todos os lados. Não é hoje o caso.

Com efeito, num primeiro momento (e durou demasiado tempo) todas as forças sociais “profanas”, ou laicas, desde os blogues às plataformas sociais, foram usados nomeadamente para atacar as posições da Igreja ou deturpar, intencionalmente, os seus ensinamentos, desde os seus dogmas de fé às suas posições sobre questões sociais candentes. Estou-me a referir às reacções à escala global e não tendo em mente nenhum país específico.

Pouco a pouco emergiu a noção de que era preciso reagir, e reagir com ousadia e criatividade ao tremendo desafio dessa nova terra de todos e por isso de ninguém a conquistar. Onde a Igreja injustificadamente não tinha ainda exercido os seus direitos de cidadania, chamada embora à liça de tantos combates em que por má fé a quiseram implicar ou onde até deveria estar por direito próprio.

EVANGELIZAR A CULTURA… VIA “WEB”

O grande comunicador e evangelizador da cultura bispo D. Robert Barron, prelado americano, desafiado creio que por Bento XVI a evangelizar a cultura nomeadamente através da “web”, não há muito tempo fez uma conferência sobre os conteúdos do YouTube, chocantemente anti-Igreja, e isto segundo o princípio da liberdade de expressão… naturalmente! Hoje, podem ver-se no YouTube todos esses conteúdos falsamente proféticos, apocalípticos, divisionistas da Igreja universal, lesivos e mesmo ofensivos da autoridade moral do Santo Padre, mas também canais de inúmeras paróquias, basílicas, catedrais famosas à volta do mundo, com as suas missas em directo, seus ciclos de conferências e outras actividades próprias do seu ministério.

Quer dizer, a Igreja vai ganhando o seu espaço na Internet e ainda bem, pois mal pareceria que a primeira religião do mundo em número de fiéis não tivesse um espaço digital compatível.

Também passeei, via “web” e em período de confinamento, por esses lugares emblemáticos do mundo católico, dando-me ao luxo de assistir à missa em Singapura e no dia seguinte em Paris ou Mumbai, e depois em Washington, Brasília ou Dublin, numa extraordinária volta ao mundo do “Catolicismo digital” em tempo de Covid-19.

Durante a Semana Santa, lembro-me bem, aguardava com impaciência a transmissão diária em directo da Via Sacra, a partir da catedral de Singapura, com lindíssimos textos de reflexão que me aportaram riqueza suplementar àquele período especial do calendário litúrgico, no estranhíssimo contexto da pandemia.

LONGE VAI O TEMPO…

…pois, em que o Papa Bento XVI pegava quase com receio no seu novíssimo “Ipad” e inaugurava a sua conta Twitter ou Facebook, já não me lembro. Hoje o Papa Francisco tem várias contas nas plataformas sociais geridas pelos seus assistentes no Vaticano, e aonde chegam e donde partem mensagens de simples solidariedade humana ou de esclarecimento que ajudam a manter mais coesa a nossa tão fracturada família humana.

Ora, sabendo como as plataformas sociais se transformaram na praça pública universal do contínuo debate sobre tudo o que vai acontecendo e nos implica a todos, directa ou indirectamente, como pensar sequer estar ausente desse debate e da praça invisível onde ele tem lugar, ininterruptamente?

E DEPOIS DA PANDEMIA?

Não sei se depois da pandemia tudo voltará à situação anterior, regressando-se à normalidade dos contactos físicos interpessoais, para além naturalmente do círculo mais íntimo ou privado. Se a religiosidade se exprime muito a esse nível, num plano mais geral ou institucional a experiência (incluindo a religiosa) recente veio demonstrar que relacionamentos de determinada natureza não sofrem em qualidade e eficácia se não contarem com a presença física dos intervenientes.

Se não é de temer passar a ver-se a Praça de São Pedro vazia, como no período mais dramático do confinamento, não estranharia poder ver diferenças de comportamento colectivo noutros contextos muito menos simbólicos, onde as vantagens do digital passassem a ser consideradas mais óbvias, à luz da recente experiência.

A Igreja adaptar-se-á a esta nova realidade do mundo digital, familiarizada já com as vantagens de estar bem visível, lá onde ninguém compreenderia a partir de agora a sua ausência.

Carlos Frota

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