Homens de paz – precisam-se!
O Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, foi duplamente brilhante, quer na conferência de Imprensa de 13 de Setembro, preparatória, por assim dizer, da nova sessão da Assembleia Geral, prestes a iniciar-se, quer na sua apresentação sobre o estado do mundo, introdutória das muitas intervenções de chefes de Estado e de Governo ou seus representantes, no hemiciclo da AG.
Com um perfeito domínio de todos os dossiês, como se espera de alguém que ocupa função tão exigente, António Guterres alia saber, inteligência (do coração) e uma excelente capacidade de comunicação. Característica que – se me é permitida a comparação – fica muitos furos acima da do seu antecessor que, com qualidades pessoais estimáveis, como tive a oportunidade de constatar, quando ele era o MNE da sua Coreia do Sul natal, não tinha vocação natural para encarnar o grande comunicador que a função de SGNU exige.
Guterres traçou um quadro lúgubre, porque realista, da situação internacional, enfatizando a multiplicidade de crises e conflitos que assolam o nosso mundo, mas mostrando sempre a via do diálogo e da negociação que, como sublinhou, são a única para não acrescentar milhões de vítima à contabilidade sinistra dos conflitos existentes.
Seja-me permitido sublinhar uma das muitas iniciativas previstas no seu plano de reformas da ONU. Guterres rodear-se-á de um painel de conselheiros em mediação, para reforçar a capacidade das Nações Unidas na prática dos bons ofícios quanto à prevenção de conflitos ou sua resolução. Porque o Secretário-geral bem tem a noção que a ONU tem sido subtilizada na mediação de crises nas relações entre Estados, o que está em contradição frontal com o papel proeminente que a Organização assume no sistema internacional.
Atitudes de paz, pois, num homem de paz!
A guerra começa…
…no coração dos homens. Na sua atitude de vingança ou de desforra. E na sua exibição tola de valentia, de que os outros, milhões de outros, serão as vítimas… Atitudes e comportamento de paz, pois, ou o seu oposto?
Pensei em que mãos está o nosso mundo entregue, tão intranquilo se encontra o planeta, ao ouvir, logo a seguir a Guterres, o discurso de Donald Trump na Assembleia Geral da ONU.
O seu discurso agressivo e desafiante desagradou-me, embora não conteste naturalmente o direito (e mesmo o dever) de os líderes nacionais transmitirem segurança aos seus povos. Mas a sua não foi uma postura de paz. Foi o oposto. Porque Trump não é sereno, nem inspira serenidade. Eventualmente também, por parecer excessivamente auto-confiante, não inspira sequer confiança. E desde logo aos seus pares, aos outros líderes da comunidade das nações, com quem tem que analisar e decidir sobre questões que nos dizem respeito a nós todos, porque a todos podem afectar, a nós e aos nossos.
Trump é um guerrilheiro permanente, de um combate que é só dele. Combate freudiano, contra o fantasma de alguém que nós, que não somos psico-terapeutas, não sabemos identificar.
Ora, a humanidade não tem culpa nenhuma do imenso ego de Trump nem das suas lutas íntimas para o conter, dentro do social e politicamente admissível.
(É caso para dizer que se o ego de Donald Trump não lhe cabe no fato, que chame com urgência o seu alfaiate à Casa Branca… ou a Mar-a-Lago, entre duas tacadas de golfe. Que o leve mesmo no Air Force One, para lhe tirar as medidas durante o voo…).
A paz não pode naturalmente ser confundida com fraqueza, cobardia. Mas a paz exige serenidade, discrição, sobriedade, e tudo isso, mormente a sobriedade, não são manifestações de falta de firmeza. Ora, o que caracteriza o Presidente americano é exactamente o oposto, a falta de sobriedade.
Francisco: um modelo a (não) seguir?
E nessa linha de pensamento, ou melhor, por contraste, voltei a lembrar-me da postura humilde do Santo Padre, ao seguir as diferentes etapas da visita à Colômbia, como reportei na minha crónica anterior.
Bem sei que o Papa não é um líder “como os outros”, não tem que ganhar a simpatia de eleitorados (com que facilidade o conseguiria, convenhamos…), não tem felizmente poder temporal e não comanda exércitos. A simpática Guarda Suíça, com os seus sabres de outra era, não será exactamente um exemplo de força de dissuasão do que quer que seja…
Mas volto à visita do Santo Padre a Bogotá (e não só). Teve o especial objectivo de ajudar a acelerar o termo das negociações com parte da guerrilha ainda não desmobilizada (ELN).
E a sua estadia teve particularmente como alvo já o passo seguinte, o de uma autêntica reconciliação nacional entre colombianos. Porque a paz não é só ausência de conflito. Esse é o primeiro passo. O que vem a seguir é delicado, moroso e pode ter recaídas. Refiro-me à cicatrização de muitas feridas da alma.
Francisco o homem da paz
Soube entretanto que o Papa tem uma viagem planeada para o fim de Novembro a Myanmar e ao Bangladesh, o que coincide com um momento de particular tensão que se vive nesses dois países.
Myanmar por ser o berço de um longo conflito entre budistas e muçulmanos, não sendo o elemento militar neutro, com as consequências trágicas que se conhecem, no número de vítimas e de refugiados nos países vizinhos. E o Bangladesh que pelos vistos ultrapassou há muito a capacidade de acolher mais refugiados e opta (não terá outro remédio…) por os concentrar num campo perto da fronteira, esperando que tão breve quanto possível regressem a suas casas. Não se sabe é como nem quando, já que muitas das aldeias donde partiram foram riscadas do mapa, pura e simplesmente, pelo exército nacional.
O Papa encontrar-se-á portanto com as autoridades e particularmente com Aung San Suu Kyi num contexto de grande preocupação nacional, e com a comunidade nacional de olhos postos na visita por isso mesmo.
Soube-se também que no início do mês de Setembro o arcebispo D. Paul Gallagher, responsável no Vaticano (Secretaria de Estado) para as relações com os Estados, visitou Teerão, tendo sido referida durante a visita a situação da minoria Rohingya em Myanmar.
Oportunidades para a paz
O que pretendo sublinhar com estas múltiplas referências à actividade diplomática da Igreja é esta sua capacidade de agir, não necessariamente sob as luzes ofuscantes da ribalta, a favor de causas que a todos interessam, como são hoje as gritantes questões da paz no mundo.
Recordo, por exemplo, o encontro pleno de significado, nos jardins do Vaticano, do falecido Presidente israelita Shimon Perez com o líder da Autoridade Palestina, Mohamud Abbas, ali reunidos para uma oração comum pela paz.
À linguagem tonitruante de certos tenores, a Igreja prefere a diplomacia dos pequenos gestos, dos pequenos sinais, dos pequenos passos.
Sem se substituir à ONU (claro!), é de aproveitá-la melhor, parece-me.
Carlos Frota
Universidade de São José