Caridade como solidariedade

Caridade como solidariedade

De uma perspectiva teológica, e mais concretamente do campo teológico da ética social cristã, tentaremos responder a três perguntas: primeiro, o que é solidariedade (reflexão cristã)? Segundo, o que implica a prática da solidariedade para o cristão (prática cristã)? E, em terceiro lugar, o que podemos e devemos fazer como cristãos em relação à acção pela solidariedade (compromisso pessoal com a solidariedade)?

Etimologicamente, a palavra inglesa “solidarity” deriva do verbo latino “solidare”, que significa unir e reunir solidamente. Solidariedade significa a unidade de todos os seres humanos e a sua obrigação de cooperar uns com os outros para construir um mundo mais humano.

A solidariedade implica uma relação Eu-Tu, o amor natural de cada pessoa pelas outras pessoas. Isto implica empatia e partilha. Dentro dos ensinamentos sociais da Igreja, o princípio da solidariedade é um dos dois princípios básicos – juntamente com o da dignidade e dos Direitos Humanos – da ordem social. As bases radicais da solidariedade são a origem, a natureza e o destino comuns de todos os seres humanos.

O homem (homem e mulher), criado por Deus, é a imagem natural de Deus, especialmente visível nas relações interpessoais. O homem, recriado em Cristo, é a imagem sobrenatural de Deus, manifestada na graça e na caridade como amor divino. De facto, a vocação do homem é única, assim como o seu destino: “Já que por todos morreu Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal” (GS n.º 22).

Caridade é o nome cristão para o amor: o amor de Deus nos nossos corações. A ética cristã é, acima de tudo, uma ética da caridade, que é o maior mandamento (cf. Mc., 12, 28-31) e, segundo São Tomás de Aquino, a forma de todas as virtudes. Assim, toda a vida moral do cristão está centrada na caridade; as outras virtudes, para serem verdadeiras virtudes, devem tornar-se mediações da caridade. Neste contexto, a autêntica sinodalidade – caminhar juntos no amor – está intimamente ligada ao amor de Deus em nós, uma caridade que respeita a verdade (a Verdade): a verdade contida nas Sagradas Escrituras, na Tradição cristã e no Magistério da Igreja.

No horizonte da caridade, o amor ao próximo constitui para o cristão a norma primordial da sua vida social: o amor ao próximo é fraternidade e solidariedade.

É importante notar que, assim como o amor natural entre as pessoas pressupõe a justiça, também a solidariedade cristã ou fraternidade pressupõe a justiça, que se torna para o cristão a primeira exigência do amor ao próximo.

PRÁXIS DA JUSTIÇA E DA SOLIDARIEDADE

Uma prática eficaz da solidariedade implica uma reflexão sobre a solidariedade. A reflexão autêntica inclui a acção social através da solidariedade. De facto, a reflexão sem acção equivale a puro verbalismo (P. Freire).

A práxis é uma acção social libertadora, ou seja, uma acção dirigida à mudança de estruturas injustas e anti-solidárias. A práxis da solidariedade refere-se basicamente a actividades voltadas para a defesa e promoção da dignidade humana, dos Direitos Humanos, da justiça social e do amor entre os povos e as nações. Em resumo, a práxis da solidariedade é a opção prática pela pessoa humana.

Na sua primeira carta encíclica Deus caritas est, o Papa Bento XVI fala com força e clareza sobre a relação entre justiça e caridade, e a necessidade de ter esta última para purificar e praticar a primeira. Haverá sempre a necessidade do “serviço do amor”. Haverá sempre sofrimento, gritos de socorro – de amor. Haverá sempre solidão. Mesmo o Estado mais justo não será capaz de proporcionar “amorosa dedicação pessoal”. Este amor oferece não só ajuda material, mas também “refrigério e cuidado para a alma” (n.º 28).

A justiça, na perspectiva cristã, tem “as suas raízes mais profundas no amor; é uma extensão da caridade que devemos mostrar aos outros”. Assim, “a justiça cristã é iluminada pelo princípio da caridade”. A justiça caritativa dá o que é “devido” aos outros: o que é legalmente devido e o que é caritativamente – por amor – “devido” (Pellegrino e Thomasma, “The Christian Virtues in Medical Practice”).

A justiça cristã faz – assim como a justiça de Cristo – um amor preferencial pelos pobres e excluídos. A justiça caridosa é justiça misericordiosa. “A misericórdia de Deus actua acima da sua justiça, não contra ela” (São Tomás de Aquino, I, 21, 3). “A justiça caridosa dá livremente, com amor e sem respeito por uma contabilidade rigorosa, que deixa para Deus” (Pellegrino e Thomasma).

A prática da justiça social, porém, não é suficiente para transformar estruturas sociais injustas e anti-solidárias. É necessário amor, porque a prática da justiça “pura” tem sido frequentemente a prática da injustiça: porque nas relações de justiça o homem continua a ser “outro”, um estranho, quando também é um “irmão” (João Paulo II, DM).

Para o ser humano, para o cristão, então, a escolha não é entre a prática da justiça ou da solidariedade. A escolha é ambas: a prática da solidariedade é impossível sem a prática da justiça.

As práticas da caridade social fazem parte do papel profético do cristão (além dos seus papéis sacerdotal e real). Como profetas, todos os cristãos e comunidades cristãs devem proclamar a Palavra de Deus às sociedades do mundo. Esta tarefa compreende três funções principais, a saber: denúncia da injustiça (função negativa), proclamação da justiça e da solidariedade (função positiva) e educação para a justiça, o amor e a paz (função educativa).

São Paulo VI denuncia: “Todo o desperdício público ou privado de riqueza, todas as despesas motivadas pela ostentação nacional ou pessoal, toda a exaustiva corrida ao armamento torna-se um escândalo intolerável”; e “a propriedade privada não constitui para ninguém um direito absoluto ou incondicional”.

A maneira mais eficaz de anunciar a solidariedade é testemunhá-la! Hoje, homens e mulheres, especialmente os jovens, acreditam mais no que vêem do que no que ouvem. E o cristão sabe que Cristo começou a Sua missão “fazendo e pregando”. Assim, todos os cristãos são obrigados, como disse o Vaticano II, “a produzir frutos de caridade para a salvação do mundo”. Todos!

Em Fratelli tutti, o Papa Francisco critica a corrupção da política e sublinha que a política é uma vocação elevada dedicada ao serviço do bem comum. Aponta os valores e princípios éticos que devem ser praticados pelos políticos (e por todos): dignidade e Direitos Humanos, justiça, verdade, liberdade, diálogo, solidariedade e subsidiariedade, fraternidade, comunhão, compaixão e ternura. Estes são os caminhos que conduzem ao bem comum e à paz social (cf. FT n.º 182).

COMPROMISSO COM A SOLIDARIEDADE

Para mudar as estruturas sociais, os homens e as mulheres devem primeiro transformar-se a si próprios; não apenas externamente, mas principalmente internamente, isto é, nos seus próprios corações: o coração é, simbolicamente, o centro e a fonte das opções, atitudes, valores e acções da pessoa humana.

Para o cristão, a mudança do coração significa a mudança do pecado para o amor. A alguns pode parecer um pouco rebuscado ligar a prática da solidariedade à conversão. Na verdade, porém, não é: não podemos praticar a solidariedade com os outros, a menos que os consideremos irmãos e irmãs em Cristo. E isso também não é possível, a menos que estejamos unidos a Cristo na graça e no amor; a menos que Deus seja experiencialmente nosso Pai: Nosso Pai!

O pecado, o pecado grave, é uma rejeição do amor de Deus em Cristo, uma traição ao amor de Deus e do próximo. A solidariedade no mal, no pecado, é o verdadeiro obstáculo à prática da solidariedade no amor. Assim, o arrependimento do pecado – uma atitude cristã permanente (cf. Mc., 1, 15) – é uma condição prévia para a prática genuína da solidariedade. A conversão contínua através da penitência, da oração e da caridade, inclui necessariamente o carregar da cruz, porque Jesus, o Caminho, é o nosso Senhor crucificado (cf. 1 Cor., 1, 23). Ele ressuscitou dos mortos, mas só depois de ter carregado a cruz, ter sido crucificado e ter morrido na cruz.

Paulo VI aconselhou-nos: Que cada um se examine a si mesmo, para ver o que fez até agora e o que deve fazer… É muito fácil atribuir aos outros a responsabilidade pelas injustiças, se ao mesmo tempo não se percebe como cada um participa pessoalmente delas e como a conversão pessoal é necessária em primeiro lugar.

Para sermos capazes de amar o próximo como irmão ou irmã, temos de amar a Deus como Pai, por meio de Jesus Cristo, no Espírito Santo. Yves Congar diz que Jesus é um Homem para os outros, porque é um Homem para Deus.

Desde o “já”, da morte e ressurreição de Jesus Cristo, até ao “ainda não” do Reino perfeito de justiça e solidariedade, o cristão individual e a comunidade cristã percorrem etapas de amor e solidariedade. Como família de Deus, marcham juntos, unidos em solidariedade. Santo Agostinho escreveu: “Enquanto corremos em direcção a Deus como veados, temos de nos ajudar uns aos outros na nossa corrida como veados, que, ao atravessarem um rio a nado, colocam os seus chifres nas nádegas do que vai à frente”.

A concluir: o objectivo final da vida cristã é o céu, a visão de Deus na plenitude do amor: “Então vi um novo céu e uma nova terra…” (cf. Ap., 21, 1-4). Como peregrinos da esperança a caminho de casa, os cristãos antecipam a casa celestial praticando a solidariedade. Este é realmente o cerne da prática cristã: solidariedade, fraternidade, amor a cada próximo. Como escreve o Vaticano II em Gaudium et spes (n.º 24), se existe algum outro mandamento, ele resume-se nesta frase: “Amarás o próximo como a ti mesmo”.

Pe. Fausto Gomez, OP

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *