Duas viagens no meus país
A primeira viagem é a Rio de Onor, aldeia raiana de fortes laços comunitários. É hoje uma espécie de local de romaria para ambientalistas, os pretensos e os outros. Apesar de integrar o Parque Natural de Montesinho, em Trás-os-Montes, e ter sido baptizada com o enfatuado nome de “aldeia preservada”, continua aí a ser possível desvirtuar livremente a traça original do casario da região. Vilipendiado à fartazana após o regresso triunfante, das franças e das alemanhas, dos emigrantes locais. Um regresso mais endinheirado, mas nem por isso mais instruído ou sensibilizado.
Quanto ao saber popular… manter-se-á, estou certo, enquanto houver gente da cepa do senhor Felismino, antigo guarda fiscal no tempo do contrabando com Espanha. «Contrabando! Qual contrabando? O verdadeiro contrabando faz-se agora. Na altura, traficavam-se umas galinhas e um tabaco para fugir à miséria». Sobre o resto dos países, Felismino anda bem informado. Sabe, por exemplo, donde podem ser originários os olhos amendoados da minha companheira. «É de Macau, não é?». Andou perto… Pouco importa, pois ela não é a primeira oriental a pisar as ruelas daquela aldeia. «Um rapaz daqui» – outra vez Felismino – «esteve na tropa em Macau e casou lá com uma chinesa. Vivem agora em Braga, mas todos os fins-de-semana vêm cá visitar familiares seus».
Metros adiante, à conversa com os velhos que apreciam devidamente o correr das horas, minutos e segundos, sentados à soleira das portas: «a raça não conta, o importante é que somos todos gente do mundo, não é?». Para eles – desse-lhes eu a rédea, e falariam a tarde inteira já que é deles todo o tempo do mundo –, «quantos mais visitantes melhor». É normal. Sentem-se isolados. Também abandonados. «Roubaram-nos os homens», comenta uma velhinha à esquina da “mercearia do Preto”, senhora de uma memória invejável e capacidade de improvisação digna de poeta popular. À televisão chama-lhe «caixote de ilusões», e, sobre esta matéria, os seus parceiros de conversa dão-lhe toda a razão.
Em Rio de Onor, todos são primos de todos. E há quem, falando Português (com o sotaque característico da região), tenha nascido do outro lado da fronteira. Assim como os há que, linguarejando um quase Galego, se sentem insultados se os confundimos com os primos espanhóis. Embora a reforma que estes auferem seja substancialmente superior à dos parentes portugueses. «Cá dão-nos vinte ou trinta contos mensais. Os de além», o ti João aponta para um conjunto de casas a uns escassos vinte metros, na parte espanhola de Rio de Onor, «ganham oitenta ou noventa». Apesar da diferença do valor, o ti João não trocava a sua presente nacionalidade pela espanhola. «Por nada deste mundo», assegura.
E a diferença não é apenas no domínio das reformas. Em tantos aspectos Espanha e Portugal vivem em pólos opostos. No primeiro, para além de, à noite, as linhas brancas da estrada serem perfeitamente visíveis mesmo numa estrada de montanha, respeita-se ainda o conceito de “pueblo” – aglomeração ajuizada de habitações – que surgem intervalados por espaços abertos onde se pode repousar o olhar. No segundo, parece não haver tinta suficiente para desenhar as faixas de rodagem no asfalto e constrói-se onde e como se quer sem qualquer padrão de referência. E o mais grave é que essa tendência, que marcou a época do cavaquismo, continua a manifestar-se. Apesar das placas com estrelinhas europeias em fundo azul prometerem programas “Feder” e “Leader”, que supostamente existem para proteger, salvaguardar, restaurar e todas as outras boas intenções que lá vêm inscritas a caracteres negros mas nem sempre são levadas a sério. O Governo, cada dia que passa mais obsoleto, mostra-se incapaz de controlar o real destino dos fundos comunitários. Mas mantém uma obsessão. Construir. Construir sempre. Sobretudo estradas. Como a que planeiam abrir de Bragança a Pueblo de Sanabria, através do Parque Natural de Montesinho. Interferindo irremediavelmente, os ecologistas lançaram já o alerta, com o precioso e frágil ecossistema daquela zona.
A viagem segunda é ao Vale do Douro. Fácil. Estação de São Bento, linha do Douro. Destino: Pocinho. Esqueçam a primeira hora de viagem. Aproveitem para ler o jornal ou um bom livro. Lá fora a desolação é tão grande que dá dó. O que de autêntico prevalece nas imediações de Ermesinde, Valongo, Paredes e Penafiel, encontra-se oculto por um matagal desordenado de betão armado incrivelmente feioso. Produto de desmandos vários dos construtores civis e especuladores imobiliários que fizeram fortuna à conta do património histórico e natural do norte do País. Selvajaria conseguida com a conivência do corrupto e incompetente poder autárquico e a lassitude de um débil Governo central. A separar um horror do outro, algumas parcelas de verde, videiras e casas brasonadas a lembrar quão bela deve ter sido a região de Entre-Douro-e-Minho há uns cinquenta anos.
A paisagem só merece de novo uma olhadela, após Marco de Canaveses, na descida para Mosteirô, onde a linha férrea encontra o Douro. Aí, tem toda a razão o cliente em apresentar o protesto à CP pelo vergonhoso estado das janelas das composições do Regional. Passam meses, as pobres, sem ver um jacto de água, tal é a sujeira. De Mosteirô ao Pocinho sucedem-se aldeias, quintas e vinhedos. Campos de laranjeiras, olivais. Narcisos, todos eles, e com razão, miram-se no espelho das águas do rio. Apenas um senão: os Croft, os Sandeman e os Cockburn desenhados nos telhados e frontarias das quintas senhoriais, lembram-nos que tempos houve em que andámos totalmente às ordens da Inglaterra.
Joaquim Magalhães de Castro