De que cor são os olhos de Deus!?
Os Institutos Missionários Ad Gentes promoveram uma série de conferências, via Zoom, com o tema: “A falta que um rosto faz…”. Muitos conferencistas de renome intervieram, entre os quais o professor Juan Ambrosio, da Universidade Católica de Lisboa, com uma partilha viva e muito interessante que, depois, com a ajuda preciosa dos organizadores e com os seus retoques finais, foi colocada em texto e publicada na Revista dos Missionários da Boa Nova: Igreja e Missão, n.° 246, Janeiro-Abril de 2021, de onde respigámos, com a lógica possível, o longo e belo texto. São apenas umas pinceladas de retoque no rosto da missão para lhe retirar a máscara que, por vezes, lhe damos, enfeitiçada de velhos hábitos e tradições e programas e projectos que, por vezes (muitas vezes), deixam de fora o rosto de todas as pessoas porque não o deixamos ver com os olhos de Deus. Será que os olhos de Deus têm cor? Sim, têm a cor e o feitio de cada ser humano, porque nos vê a todos como únicos e humanos e não faz distinção de pessoas. Vê, pois, o mundo pluricultural e pluricolorido de povos, raças, bandeiras, etnias, religiões, e olha as pessoas como filhas muito amadas, sejam elas quem forem: santas ou pecadoras, pobres ou ricas, bonitas ou feias, honestas ou oportunistas, terroristas ou criminosas, cristãs ou muçulmanas, ou budistas ou hindus, ou crentes ou indiferentes ou ateias. Vê-nos como Jesus viu; ou melhor: já nos mostrou como vê, em Jesus: na mulher prostituta, na adúltera, no filho pródigo, na mulher sírio-fenícia, na escolha de Simão, o zelote, e Judas iscariates, do publicano Mateus, do jovem paralítico de Cafarnaúm, do cego Timeu, de Jericó, do ladrão arrependido, no Gólgota, que morreu ao lado de Cristo. São os olhos de Deus com as cores da nossa pele, do nosso coração, da nossa miséria e da nossa graça. Olhos de misericórdia, de salvação e de liberdade. Queremos, com estes extractos da conferência do professor Juan Ambrosio (para os quais pedimos a devida vénia ao autor e à revista Igreja e Missão), dar a conhecer aos nossos leitores a beleza da missão quando vivida sob o olhar terno e clemente de Deus.
(Nota de Direcção da Revista Boa Nova – atualidade missionária)
SE NÃO CONHECEMOS OS OLHOS DAS PESSOAS É PORQUE NUNCA AS OLHÁMOS –Se não conhecermos de que cor são os olhos das pessoas com quem nos cruzamos, com quem trabalhamos, a quem somos enviados em missão, se não conhecermos a cor dos seus olhos, é porque nunca os olhámos verdadeiramente. E se não os olhamos verdadeiramente nos olhos como os poderemos conhecer? Como é que podemos trabalhar com eles e para eles? Como é que podemos verdadeiramente saber o que eles precisam, o que anseiam? Como podemos deixar que, connosco, sejam protagonistas do seu percurso? E o mesmo digo dos olhos de Deus? Que cor têm os olhos de Deus?
No fim deste percurso talvez possamos perceber que a cor dos olhos de Deus é, em certo sentido, a mesma daqueles a quem somos enviados. Tem, pois, as diversas tonalidades de um arco-íris imenso. Um arco-íris que tenho de conhecer!
QUE COR TÊM OS OLHOS DE DEUS? –É esta pergunta que me vai guiar. Vou tentar tirar a máscara, tentando descobrir a cor dos olhos de Deus de quem sou chamado a ser próximo e nesses olhos descobrir a cor dos olhos de Deus. Faço isso a partir de um itinerário que passa por este rápido momento de enquadramento.
A Igreja tem dois modos fundamentais de realização: a comunhão e a missão. Estes dois modos são dimensões estruturantes e fundamentais do seu ser e viver.
A Igreja é, e não pode nunca deixar de ser simultaneamente, comunhão e missão. Ela é comunhão para a missão, e ela é a missão que constrói, edifica e constitui a comunhão. Nenhum destes modos pode prevalecer sobre o outro, porque isso afectaria a própria identidade e o próprio ser da Igreja.
A Igreja tem esta dupla polarização: A participação comum nos dons de Deus, que é participação dos dons de Deus num movimento de concentração, para dentro, de modo a constituirmos uma comunidade que não se desagrega, que fica unida à volta do Senhor Ressuscitado, que a convoca. Mas tem também um movimento de testemunho, proposta dessa realidade em que se participa como impulso missionário, para fora. São estes dois movimentos que constituem o ser e o agir da Igreja. E têm de estar de tal maneira balançados para que não entrem em choque. Para que não se desestruturem, para que não se enfrentem e não quebrem a unidade. A Igreja tem simultaneamente estes dois movimentos numa dinâmica tensional.
DOIS PILARES DO PAPA FRANCISCO –Primeiro pilar: o desafio é que a Igreja se pense, que a Igreja se organize, que a Igreja se vai estruturando a partir das periferias a quem ela é enviada. E, portanto, este movimento para fora passa também a configurar e marcar o movimento para dentro, que a congrega, que a une, que a faz ser isto que ela é e a distingue de todos os outros movimentos, associações e grupos.
Segundo pilar: a Igreja deve repensar-se, mas não o deve fazer simplesmente por si e a partir de si. Por isso identifico o outro pilar do pontificado de Francisco na Carta Encíclica Laudato Si’, um texto de 2015, que não é simplesmente uma carta verde, nem é só ecológica. No entanto, aponta para uma ecologia integral, e por isso não simplesmente ambiental, mas também humana, social, económica, cultural, profundamente comprometida com o cuidado da casa comum.
O CAMINHO PARA ESTARMOS JUNTOS: LEIGOS PASTORES –Discernir, perscrutar juntos. Decidimos juntos. Implementamos juntos. A sinodalidade não é na Igreja, não pode ser, apenas uma metodologia. É um modo de Ser, mais do que uma metodologia. Tudo tem de ter esta marca. Também a missão tem que ter esta marca da sinodalidade. É um caminho que se faz em conjunto. De um discernimento em conjunto (dos missionários e do povo a quem são enviados) para uma implementação em conjunto.
MISSÃO: COMPROMISSO COM O “BEM VIVER” –A preocupação da missão não pode nunca esquecer o compromisso com o “bem viver” das pessoas. Se pensarmos bem, Jesus disse ao que vinha e o evangelista João captou isso bem: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo., 10, 1 0). Esse “bem viver” implica e exige “um bem fazer” que tem, igualmente, de ser outro dos traços característicos do rosto da missão, porque não se podem separar as dimensões materiais das espirituais.
O SONHO DO PAPA PARA A AMAZÓNIA É PARA O MUNDO –Estas notas são, para nós, traços concretos do rosto da missão. A participação, o acolhimento, a criatividade e a harmonia procurando os valores da paz, da misericórdia, da comunhão. A missão tem que procurar isto, tem que ousar isto, tem que percorrer estes caminhos. Caminhos que estão a ser ensaiados naquele território (Amazónia) mas que têm de ser percorridos por toda a Igreja universal.
Eis os sonhos do Papa que deverão ser caminhos para a missão da Igreja:
“Sonho com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
Sonho com uma Amazónia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazónia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazónia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazónicos.
Descrevendo os sonhos assim, alguns dirão que o documento fica, então, confinado ao território amazónico. Sinceramente não penso assim e o simples exercício que a seguir proponho parece sustentar esta minha afirmação. Substituamos a palavra amazónia pela palavra mundo e pela palavra Igreja. Eis como fica:
Sonho [com um Mundo, com uma Igreja] que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
Sonho [com um Mundo, com uma Igreja] que preserve a riqueza cultural que o caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho [com um Mundo, com uma Igreja] que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que o adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho [com comunidades humanas, com comunidades cristãs] capazes de se devotar e encarnar de tal modo [no Mundo], que deem à Igreja rostos novos com traços [de cada lugar do Mundo].
Sinceramente não me parece que existam alterações significativas. O Sonho é o mesmo. Permanece igual. Aquilo que é dito é realmente dito a partir da Amazónia, mas é simultaneamente dito para todo o mundo e para toda a Igreja. A compreensão daquilo que Deus nos está a dizer nestes tempos de pandemia torna-se um desafio também para a missão da Igreja. […] somos convidados a redescobrir que precisamos das relações sociais e também da relação comunitária com Deus. Longe de aumentar a desconfiança e a indiferença, esta condição deveria tornar-nos mais atentos à nossa maneira de nos relacionarmos com os outros.” (Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2020, n.º 7).
Muito mais atentos. Mais atentos para conhecer a cor dos olhos….
PROF. JUAN AMBROSIO
In Boa Nova – atualidade missionária