Sementes de paz?
O acontecimento estava na forja, mas foi acelerado pela infeliz gafe de Joe Biden, respondendo de maneira inábil a jornalista da televisão americana. Desculpou-se a seguir em telefonema para Vladimir Putin. E fez bem. Fez o que devia.
E o encontro teve lugar em Genebra, no mesmo ambiente do famoso face-a-face Reagan-Gorbachov, mais de três décadas antes, em 19 e 20 de Novembro de 1985. A mesma mansão senhorial, o emblemático repuxo no lago Léman, o casario sóbrio, os jardins verdejantes. E as ruas desertas, por causa do acontecimento.
UM MUNDO DIFERENTE
Só os interlocutores são diferentes. Os interlocutores e sobretudo o mundo em que vivem. Em três décadas, muita coisa mudou. E desde logo a quase “irrelevante” China de então, que se tornou, além de muitas outras realidades, uma potência económica de primeiríssimo plano e uma grande potência científica, tecnológica e… espacial! Quem sonharia?
Também Biden representa uma América muito diferente da de Reagan, sobretudo pela mais recente evolução dos conflitos sociais e seu reflexo no xadrez político. Do lado dos republicanos, ao conservadorismo revitalizado por Reagan sucedeu o populismo de Trump. E do lado dos democratas, as diversas minorias tornaram-se mais exigentes e… ruidosas, na prossecução dos seus objectivos de igualdade e não-discriminação.
E Vladimir Putin dirige uma nova Rússia que se ergue da humilhação da perda do estatuto de grande potência, com a dissolução da URSS, e se reergue e redefine como actor internacional que, no mínimo, não pode ser desvalorizado e, por isso mesmo, ignorado.
O “ACONTECIMENTO”
O cenário das cimeiras de líderes mundiais é sempre o mesmo e é sempre diferente. Basta recordar os encontros do anterior Presidente americano com o líder norte-coreano para se perceber como se combinam, de modo estranho, seriedade e… espectáculo. Sobretudo quando os personagens assumem papéis incomuns na cena internacional.
E na idade em que os media dominam, a dimensão cénica está sempre presente. Com actores principais e figurantes, aliás.
E lá esteve o formigueiro de gente anónima – esse “exército civil”, uniformizado de fato escuro e gravata – para afinar todos os detalhes, quase como numa orquestra – e ai de quem desafine! A presença imponente das forças de segurança do país anfitrião e, naturalmente, a multidão dos jornalistas de todo o mundo, a escrutinar os pormenores que hão-de fazer a “diferença” dos seus despachos noticiosos, para as respectivas redacções.
Em outro vídeo (YouTube, pois claro, mas desta vez a omnipresente Rutply) vejo os dois aviões presidenciais aterrarem. O cortejo de automóveis à sua espera. E as limusines de bandeiras desfraldadas, duas por cada chefe-de-Estado, para baralharem os mal intencionados atiradores isolados que, escapando à segurança, só poderão errar, ao privilegiar um só alvo…
…perspectiva chocante a deste mundo inseguro, em que os líderes políticos precisam de ser não apenas protegidos, mas híper-protegidos.
SÍMBOLOS DE PRESTÍGIO E PODER
Aviões e limusines são símbolos de status. O poder nacional simbolizado pelas asas da aeronave mais sofisticada e pelo automóvel blindado mais poderoso! É assim a coreografia do poder dos grandes! Que saem dos enormes pássaros mecânicos quase sempre de ar jovial, prontos para defrontarem os media, quando é o caso.
Em Genebra não foi assim. A segurança prevaleceu e quer câmaras quer microfones ficaram longe…
Pergunto-me sempre: o que pensará cada líder, ainda no avião, a caminho de um encontro muito importante com homólogo estrangeiro? Terá exacta consciência da expectativa que gera nos media e nas pessoas comuns, sobretudo quando o que está em causa é muito importante? Certamente que sim, direi sem errar.
A menos que, de tal modo imbuído do espírito de jogo (a geoestratégia é frequentemente associada, como se sabe, ao jogo de xadrez… e o mapa-mundo ao respectivo tabuleiro), mais lhe importe o xeque-mate do que as suas consequências. É que, como a História o demonstra, há por vezes vitórias imediatas que se vêm a revelar derrotas para todos, no médio e longo prazo.
SIMPLESMENTE, A PAZ
Ora, a paz é um bem demasiado precioso para que não se deseje ardentemente o pleno uso do diálogo, quer dizer da diplomacia, com o objectivo de ultrapassar a incompreensão e o ressentimento nas diversas áreas do relacionamento entre nações. Para evitar preconceitos que desabrocham em inimizades difíceis de reparar. E para tentar cicatrizar feridas que se foram multiplicando, por golpes desferidos de ambos os lados, desde o fim da Guerra Fria.
Joe Biden e Vladimir Putin foram pois à Suíça para dialogar, cientes da responsabilidade que recai sobre os seus ombros. São líderes com uma visão não apenas diferente, mas quase oposta do mundo, emergentes de sociedades distintas, produtos de histórias nacionais nos antípodas uma da outra, se tal se pode dizer, mas que por mero imperativo de sobrevivência têm que ser imaginativos na descoberta de fórmulas novas de coexistência. Para preservarem a PAZ.
Mas uma paz que não seja contra ninguém. Numa ordem internacional multipolar (América-China-Rússia + União Europeia, mas esta noutro patamar), pese embora o jogo de alianças, formais e não formais, a paz só se garante se todos dela beneficiarem em moldes satisfatórios.
Bem sei que esta ideia parecerá ingénua aos olhos de muitos, mas uma paz “insuportável” para alguns acaba sempre por gerar conflito. Veja-se, embora em pequena escala, a mais recente explosão na Terra Santa… mau grado a pseudo-paz de Trump-Netanyahu + (alguns) Países Árabes.
Ficaram de fora os palestinos. O resultado está-se a ver.
UM RECONHECIMENTO MÚTUO
Não é nada fácil – mesmo pouquíssimo provável – Estados Unidos e Rússia convergirem em pontos essenciais do seu relacionamento bilateral. Mas desfeita qualquer ilusão a esse respeito, importa saber coexistir.
Aliás, pergunto-me se não é esse mesmo o imperativo mais geral, neste tempo de mudança: saber coexistir para além das diferenças, para preservar a paz e a segurança globais. Aprofundando a cooperação sempre que possível.
PARA ALÉM DE GENEBRA
Há outro encontro que imperativamente tem que acontecer em breve e esse, sim, com repercussões à escala global. Já adivinharam… refiro-me ao recomeço, ao mais alto nível, do diálogo América-China ou China-América, para não ferir as susceptibilidades de ninguém.
Num mundo de múltiplas dependências, mas de valores diferentes, inspirados por percursos históricos ainda mais distantes do que os da “nova” Federação Russa, esses parceiros de um diálogo histórico obrigatório têm que forjar as regras de uma coexistência cooperante e não hostil. E aqui, o ónus recai em grande parte, creio, sobre os Estados Unidos, embora o discurso de Biden vá no sentido oposto.
É imperativo aprender a co-gerir o mundo, em vez de pretender liderá-lo sozinho. Persistir em tal ilusão pode custar-nos caro, a todos nós.
A CONCLUIR
Não pude deixar de seguir, com intensidade muito pouco habitual a cimeira de Genebra. Sabe-se que o sistema internacional está a mudar; e sabe-se que, historicamente, tais mudanças não são isentas de riscos.
Leio no “site” do Vaticano que tais incertezas e a ansiedade por elas gerada levaram o Conselho Mundial das Igrejas a mobilizar os seus membros a uma jornada espiritual de oração a favor do sucesso do encontro.
Todos compreendemos que é enorme o desafio.
Carlos Frota