Hosana ao Deus Único!

VATICANO E O MUNDO

Hosana ao Deus Único!

Alguns clérigos muçulmanos radicais argumentam que usar “Alá” para designar Deus constitui direito exclusivo dos muçulmanos e permitir que os cristãos o façam pode causar … confusão e inquietação (sic).

Haveria pois, apesar da ideia, partilhada pelas três religiões monoteístas, de um Deus único – o Deus de Abraão – uma espécie de tratamento preferencial, só reservado a alguns, por ser Deus mais sensível ao chamamento por quem O trate assim: Alá. Ora, todos sabemos que as palavras unem… ou desunem, constroem pontes ou precipícios, juntam ou separam, congregam ou marginalizam.

À medida que os anos passam, tenho cada vez mais consciência do poder extraordinário das palavras, desde as de paz e reconciliação – para que apelam os Evangelhos e as prédicas dos sacerdotes, na nossa Eucaristia Dominical – até às usadas nos comícios políticos de certos líderes, muito mais interessados em “dividir para reinar”, como ficou demonstrado num conhecido país, até um passado muito recente.

UM VEREDICTO HISTÓRICO

Tive a ocasião de enfatizar, na minha última crónica, a importância (simbólica e não só) da recentíssima visita do Santo Padre ao Iraque e do seu encontro com o Grande Ayatollah Sayad Al-Sistani, um homem de paz, no dizer do próprio Papa Francisco. Pois esses dois homens falaram um com o outro inspirados pelo mesmo Deus, o mesmo Alá diria eu já, para me aproximar do tema central deste meu escrito.

Leio com muita alegria o seguinte: “O Supremo Tribunal da Malásia determinou que o uso da palavra ‘Alá’, para designar Deus, também pelos cristãos, não é ilegal. Numa decisão histórica, a mais alta instância judicial do País anulou uma proibição governamental sobre o uso de ‘Alá’ por não-muçulmanos, estabelecendo que tal proibição viola os direitos constitucionais, mormente o de liberdade religiosa”.

E pormenoriza o articulista: “após uma batalha legal que se arrastou por mais de uma década, o Supremo Tribunal em Kuala Lumpur decidiu que o uso de palavras islâmicas, incluindo ‘Alá’ por cristãos e outras comunidades não muçulmanas no País, não é contra a lei. Os não-muçulmanos também podem usar tais palavras para fins religiosos e educacionais, incluindo orações, publicações e serviços religiosos”.

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“Alá” é uma palavra que veio do Árabe para a língua malaia, para se referir ao seu Deus, por séculos. No entanto, os cristãos de origem malaia estão acostumados com a prática religiosa de usar a palavra “Alá” para Deus, também há séculos, especialmente nos Estados de Sabah e Sarawak, no Bornéu, onde vivem cerca de dois terços dos cristãos do País. Os muçulmanos representam cerca de sessenta por cento da população de 32 milhões da Malásia e os cristãos são cerca de treze por cento, constituindo o terceiro maior grupo religioso.

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A proibição do uso de Alá por não-muçulmanos surgiu depois que as autoridades em 2008 apreenderam, de uma cristã malaia, Jill Ireland Lawrence Bill, oito CDs educacionais com a palavra “Alá” neles contida, no aeroporto da capital, quando a referida cidadã regressava de uma visita à Indonésia. As autoridades evocaram uma directiva do Ministério do Interior de 1986 que proibia os não-cristãos de usar a palavra, dizendo que era uma ameaça à ordem pública. Bill interpôs então um recurso no Supremo Tribunal de Kuala Lumpur defendendo o direito de usar a palavra “Alá” para práticas religiosas. Em 2014, um tribunal declarou a apreensão ilegal e os CDs foram-lhe devolvidos no ano seguinte.

LIBERDADE RELIGIOSA

A decisão de 10 de Março da mais alta instância judicial enfatizou o direito da recorrente de não ser discriminada com base na sua fé. No seu veredicto, o juiz Nor Bee considerou que a palavra “Allah”, juntamente com três outras palavras de origem árabe: “Kaabah” (o santuário mais sagrado do Islão em Meca), “Baitullah” (Casa de Deus) e “Solat” (oração), poderia ser usada com toda a legalidade.

O magistrado reforçou que a directiva que proibia o uso das quatro palavras era “ilegal e inconstitucional”. “A liberdade de professar e praticar a religião”, disse, “deve incluir o direito de possuir materiais religiosos”. O juiz anulou assim a directriz do Governo, de 1986, referindo que o Ministério do Interior havia ultrapassado os seus poderes.

Mas esta não é a primeira vez que um tribunal da Malásia se divide quanto ao uso da palavra “Alá”. Num caso separado, o semanário católico local,The Herald, processou o Governo depois deste ter dito que não poderia usar a palavra na sua edição em língua malaia para descrever o Deus cristão. Em 2009, um tribunal de Primeira Instância decidiu a favor do semanário e permitiu que usasse a palavra, uma decisão que gerou fortes protestos de grupos radicais muçulmanos.

Dezenas de igrejas e algumas salas de orações muçulmanas foram atacadas e queimadas após a decisão. Em 2013, o Tribunal de Segunda Instância restabeleceu abertamente a proibição. Um ano depois, o The Heraldperdeu uma batalha legal no tribunal por causa da ordem do Governo. A Sidang Injil Borneo (Igreja Evangélica do Bornéu) também tem lutado pelo direito ao uso da palavra “Alá”.

A Muafakat Nasional da Malásia – uma coligação política – pediu que a decisão do Supremo de 10 de Março seja reencaminhada para o Tribunal de Recurso.

CONSTRUIR PONTES… FINALMENTE?

As palavras unem… ou desunem, constroem pontes ou precipícios, juntam ou separam, congregam ou marginalizam. O meu Alá é o teu Deus. E vice-versa…

Sempre que entrei numa mesquita, tive a noção de que ia visitar Deus. Ia encontrar Deus. Porquê? Por que razão tal sentimento num cristão, num católico? Porque me dizia sempre, no íntimo de mim mesmo, que bastava estar ali uma única pessoa a rezar, para eu estar com ele. E rezar não a um Deus diferente, a um outro Deus, mas ao mesmo Deus. E, pensava eu ainda, esse é o único solo comum, onde construir o edifício da paz e do respeito mútuo.

Daí também o profundo respeito pelos meus colegas diplomatas ou outros amigos que observavam, de forma estrita, o Ramadão. Nunca me perturbou o significado islâmico preciso de tal prática, vendo sempre nesse sacrifício livremente aceite uma evocação da nossa Quaresma. Repito, não no significado teológico, obviamente, mas na renúncia pessoal a que igualmente apela.

Poderia dizer assim: se o Islão, como o Judaísmo aliás, são órfãos de Jesus, o Deus infinito que tudo vê e tudo sabe… lê permanentemente o que vai no coração de cada um. E é aí que tudo se joga.

E muito cuidado (agora “falo” só comigo e para mim) quanto à parábola do fariseu que foi rezar ao templo, na primeira fila para que Deus o visse bem. Esse não serei eu – enquanto muitos dos que se quedam humildes na última fila, sem levantar sequer os olhos, não serão muçulmanos ou judeus – mas de coração contrito? Jesus bem avisou sobre quem no fim seria exaltado…

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Da imensa Mesquita de Jacarta, na muçulmana Indonésia, vê-se a Catedral (católica) de Jacarta. Sim… na tolerante Indonésia. Muitas vezes imaginei esses dois belos edifícios quase vizinhos em diálogo mudo, fitando-se sim, mas não se hostilizando nunca. Foram as autoridades nacionais que quiseram a proximidade física dos dois locais de culto, para que as pessoas vissem entre eles as pontes possíveis, não os precipícios imaginários.

Carlos Frota

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