Missa da meia-noite
E lá fui ao baú das recordações! A fechadura estava enferrujada, os rótulos de muitas andanças já descoloridos, mas de repente um “envelope” de lembranças gritou-me, de forma insistente, que queria rever a luz do dia. Eram os postais dos meus natais mais antigos!
E pus-me a folhear deslumbrado, remexendo depois mais fundo na minha memória longínqua de menino.
Então escrevi.
A magia estava toda lá, nessa missa da meia-noite, onde as religiosas doroteias do Colégio de Nossa Senhora da Conceição, de Benguela, em Angola, e suas alunas, deliciavam a pequena comunidade dos fiéis, das redondezas, com a singeleza dos cantos de Natal. Ainda menino, eu adorava aqueles momentos, aquela magia, aquela espiritualidade indescritível que nos vinha directamente do presépio.
E O PRESÉPIO…
…era uma outra e belíssima aventura! Os pormenores do recanto da aldeiazinha em miniatura, dos camponeses pobres e seus rebanhos, dum céu de cartolina azul tão bonito que as figurinhas de anjos de gesso pareciam mesmo reais, a cantar o Glória com as suas vozes afinadas por harpas invisíveis.
E DEPOIS AS LUZES E AS FLORES
E no altar pontificava um sacerdote risonho e simpático que todos os anos nos contava sempre a mesma e sempre diferente história, a do Deus que milagrosamente nasce, para milagrosamente nos acompanhar sempre. Sempre!
Tive dois desgostos tão grandes em menino de que, na linguagem dos símbolos que só usamos para falar do indizível, posso afirmar que nunca me recompus. O primeiro foi ter percebido que a lista de pedidos da minha “carta ao Menino Jesus” era gerida com o pragmatismo frustrante de quem, lá em casa, fazia sempre de… Pai Natal. E que afinal eu até reconheceria o personagem, se ficasse acordado até determinada hora da noite.
Mas eu obrigava-me a ir dormir, para não quebrar a magia da mais bonita das ficções. Aprendi na vida que elas são raríssimas… e transmiti essa, sem hesitação, à geração seguinte, sem receio de que ficasse prejudicada, irremediavelmente, na compreensão científica do mundo!
O outro desgosto teve a ver com o saber, no recreio da escola, onde a brutalidade da vida, com todos os pormenores, é ensinada de chofre – sem advertência e sem Mestre –, que afinal a cegonha não vem de Paris, nem de lado nenhum, porque nem sequer faz a viagem.
Aprendi, anos depois, que é exactamente no presépio que pedimos emprestadas as asas aos anjos, se quisermos ter uma primeira experiência de céu. E que também nós continuamos a precisar de asas para dar aos filhos as dimensões do sonho. E para lhes servir de anjos da guarda, até quando é possível.
DOIS DESGOSTOS E UMA ALEGRIA
Acima falei de dois desgostos e agora falo de uma grande alegria. A de que, ao crescer, não deitei fora o sentido de milagre da vida. Salvou-me desse cepticismo venenoso… o quê? Talvez os livros e depois a oração. Sim, definitivamente, a oração. E o mundo da literatura. Onde a alma humana é por vezes exposta com as suas feridas mais íntimas todas abertas. Como se de carne viva se tratasse. Ainda hoje, atraído pelos mistérios da escrita, revejo personagens que me marcaram, frases que não esqueci, expressões tão vivas como se as tivesse observado no cinema – e tudo isso na magia do texto repleto de hieróglifos, nessa que é certamente das maiores aventuras do espírito humano: a escrita!
Aliás, não foi por ela que revisitámos, vezes sem conta, a história desse amor louco de um Deus para com a sua criatura? Não é a Bíblia o livro mais lido de sempre?
A vida como milagre. A contínua dádiva do presépio é assim a própria vida – digo para mim mesmo vezes sem conta, sobretudo na quadra festiva que vivemos. Como merecer plenamente esse milagre?
Como pintar o quotidiano com as cores festivas que esse milagre exige, independentemente dos altos e baixos da própria vida? Como preferir sempre o mel ao fel, o sorriso límpido à careta de desgosto, o abraço acolhedor à brusquidão das partidas sem regresso?
OS BRINQUEDOS
Não tenho a certeza se a distribuição das prendas, ou a sua descoberta na chaminé, e mais tarde na árvore de Natal, era o momento mais importante dos meus natais. Se calhar era mesmo mas, mais de meio século passado, a memória já racionalizou tanto as experiências originais que ainda me ponho aqui a dizer que era diferente das outras crianças – e obviamente não era!
Claro que gostava de carrinhos, com corda ou sem corda, daqueles a reproduzir em miniatura os modelos das marcas reais. E livros, claro. Mas a própria atmosfera familiar da quadra encantava-me, isso sim. Parece que vivíamos todos, em torno da mesa festiva e fora dela, uma espécie de trégua prolongada, como se as guerras do quotidiano estivessem ali suspensas por uma espécie de mediação vinda de algures…
E depois havia as conversas dos adultos, eles próprios recordando natais do seu passado: e assim tornando ainda mais frondosa essa árvore dos afectos, unidos por um mesmo ou poucos apelidos.
Minha avó materna era, no deslizar suave da narrativa, das narrativas, o ponto de união de muitos destinos desencontrados e ali desvendados, em histórias sucessivas: de sucessos e de insucessos, amores e de desamores, enfim, todos ou quase todos os condimentos da vida.
MUITOS ANOS MAIS TARDE
…a suavidade dos cantares de Natal, sintonizados de uma longínqua estação de rádio e mais tarde provenientes da nossa colecção de discos, vinha acrescentar o tal toque de magia a esses momentos únicos.
Nos anos mais recuados, uma certa intimidade era naturalmente garantida pela ausência da televisão que ainda não invadira as nossas vidas. Em África, nos anos cinquenta e sessenta do século passado, o rádio era a única ponte invisível de ligação ao mundo (fascinante… e felizmente distante) da Europa.
Estávamos pois protegidos da fatalidade dos nevões que só coloriam estranhas paisagens que não eram as nossas!
NO MEU TEMPO…
Claro que sei o que estão a pensar deste breve passeio pelas avenidas da memória. São geografias irreconhecíveis as desses lugares, é verdade. Certamente ainda se canta a Missa do Galo no colégio das irmãs doroteias de Benguela. E há sempre meninos para sonhar com prendas natalícias, mesmo se só alguns as têm.
Mas onde regressar ao tempo, feito de todos os meus tempos, se não visitando o meu baú das recordações?
Curioso, no meu baú de recordações não conservo quase nenhumas fotografias. Ou porque as sucessivas andanças da vida mas fez perder, ou pela minha resistência mais ou menos óbvia a esse testemunho “que fica”… quando na vida tudo o mais se perde.
Carlos Frota