Parece que este Verão macaense, tão original, me propicia escritos de sabor evocativo. Estes serão, certamente, substitutos dos abraços que se não podem dar, das mãos que se não podem tocar, das palavras que se não podem pronunciar nem ouvir.
Desde a mais tenra idade…
…muitas das minhas recordações dominicais estão intimamente ligadas a duas experiências decisivas que nunca deixaram de me acompanhar pelos anos fora: a família é claramente uma delas; a outra é a participação na Missa.
Visitar parentes ao Domingo à tarde, ou receber parentes de visita, constituía (e constitui ainda hoje, já só na lembrança naturalmente) uma daquelas liturgias da vida comum que mais me aquece o coração.
E tendo “praticado” outros costumes, com amigos de outras culturas e geografias (como com os meus amigos árabes e africanos), percebi desde muito cedo que a educação para a hospitalidade é das facetas mais ricas na construção de laços, tão decisivos na formação das pessoas; e na paz e solidariedade intra e inter-comunidades.
É nas famílias que se ensaiam os primeiros passos da amizade. E quando o contrário acontece, perde-se uma das chaves mais importantes para a construção de sociedades felizes. E como sabemos nós, hoje, o quanto o mundo está carente delas! De sociedades felizes!
Do mesmo a Missa Dominical, como secreta tecelã de laços invisíveis entre Deus e os homens, Criador e Suas criaturas.
Desde um conjunto enfadonho de fórmulas e gestos que se não compreendem, para a criança que se é, até à belíssima narrativa de uma magnífica história de amor, sempre renovada, a Missa constitui, à medida que os anos vão passando, essa caixa de tesouros da vida espiritual onde se pode ir descobrindo mais e mais dos magros pão e peixes que Jesus multiplicou.
E se o centro do Mistério é a Consagração, muito próximo fica a Palavra, a que se ouviu ler e a que fica a ressoar dentro de cada um.
A vida longa de uma ideia
Se houve perfídia que, de forma totalmente demagógica, subverteu valores tradicionais, o da ridicularização deliberada da trindade “Deus, Pátria, Família” foi um deles. Deus era para deitar para o lixo, se não para liquidar a sangue frio; o amor da Pátria era coisa do passado; e a Família era instituição, cujo prazo de validade tinha expirado!
Muitas revoluções depois, vemos que, na maior parte dos países, de uma forma ou de outra, ressurgem tais valores ou seus substitutos muito próximos – e porquê? Porque neles repousa a estabilidade das comunidades e constituem traço de união fortíssimo entre os seus membros.
As minhas aventuras de Domingo
Caixeiro-viajante da vida, quer dizer, a saltitar de lugar para lugar, por razões da História da minha terra e da profissão que escolhi, estes dois marcos da minha experiência dominical – família e Missa – viriam a faltar-me muitas vezes, segundo as mais diversas circunstâncias (filhos ausentes, igreja inatingível pela distância). Múltiplas perdas ou ausências que foram sempre por mim vividas como privações do essencial, nos diferentes registos do essencial que a vida tem.
Oriundo de uma grande família pelo lado paterno (meus bisavós algarvios geraram e educaram dez filhos, de que meu avô seria o mais velho) a minha meninice foi marcada pelo traço forte de haver muitas pontes para a vida; e de haver muitos abraços a fazer superar melhor os momentos tristes.
E não muito longe de casa lá estava a igreja onde fui baptizado, a simbolizar esse traço de união indestrutível entre os que iam partindo, sem regresso, e os que ainda tinham que fazer muitos ou poucos anos da sua jornada.
Com a catequese preparatória da primeira comunhão e a recepção desse sacramento, pela primeiríssima vez, uma nova consciência se me formou, inevitavelmente, do “viver em Igreja”, estando mais próximo, com a imaginação e os limites de qualquer criança, de um mundo invisível, só pressentido pela Fé, mas donde brotavam e britam energias inspiradoras, susceptíveis de me ajudarem a lidar com o “lado de fora” da vida.
E a prática religiosa em casa, sobretudo por parte só da minha mãe, num primeiro momento, ajudou a consolidar laços com esse Deus invisível, mas tão estranhamente presente no nosso quotidiano.
O crescer foi para mim, como para tantos, o desafio de novas interpretações do mundo, novas filosofias, novas ideias pretensamente construtoras de uma sociedade melhor – de um mundo onde a família era só suportável, quando não de todo “descartável”, e onde Deus era um intruso. E como todos os intrusos, passível de expulsão…
Até se chegar à genialidade (?) da “morte de Deus”, que pelos vistos se finou só nos magros escritos de uns tantos, incapazes de inventar melhor do que já havia sido fantasiado por outros no passado.
A “morte de Deus” é cíclica, como sabem os estudiosos de História e de Filosofia. Mas como insistem os cristãos com a teimosia da Sua Fé, Ele ressuscita sempre.
E passou a pôr-se em causa tudo o que parecia a enorme hipocrisia da velha ordem, para oferecer pacotes de novas felicidades. E foi o desvario das experiências de regresso ao primitivo, à mãe Natureza, ao panteísmo, ao deus sol e seus adoradores.
A espaços regulares vou ler a Bíblia para me assegurar, como diz o Eclesiastes, que «nada é novo debaixo do Sol». E lá estava, ciclicamente lá estava e lá está, esta história, repetida tantas vezes, dos desvarios dos homens e da infinita capacidade de perdão de um Deus que foi mesmo morto. Mas…
…“perdoa-lhes Pai, eles não sabiam o que estavam a fazer”…
Um mundo de fantasmas solitários
Foi há mais de trinta anos. Estava eu em Paris, a caminho da Gare de Austerlitz, para apanhar o comboio para Orleães, quando de repente me dei conta de algo que já vira certamente inúmeras vezes… sem ver! Em mesas sucessivas de sucessivos cafés, gente isolada, homens, mulheres, velhos, novos, os olhos vagos a ver não sei o quê na distância, e sozinhos. Mesas e mesas e mesas, cafés atrás de cafés, de gente sozinha. Mas não apenas sozinha – abandonada! Com ar de gente abandonada. Escorraçada da vida.
Senti o choque de uma primeira revelação! É isto a que aspirou o individualismo, símbolo proclamado da liberdade pessoal, mas afinal e quase só o cortar das amarras das solidariedades mais básicas?
Ser humano no novo normal
Família e Missa, dizia eu. Formas de nos ligar aos outros e ao divino, aos Domingos e todos os dias. Formas de superar as muitas solidões do ser humano. Cá em baixo. Lá em cima.
Neste “novo normal” que estamos a viver, desde há seis meses, à escala global, se calhar chegou o momento de repensarmos o que é de facto imprescindível. Nomeadamente à luz das experiências de confinamento que nunca tínhamos pensado pudesse impor-se como regra universal!
O que foi ou o que é estar sozinho, estar hospitalizado em isolamento absoluto e – suprema tragédia! – morrer em total solidão!?
Uma pequena vantagem…
A Fé dá, a quem a tem, uma “pequena” vantagem, nestes tempos de crise, quer a nível colectivo, quer principalmente a nível individual.
É que cada crente tem dentro de si um pequeno templo invisível, onde vai sempre que queira.
E não apenas aos Domingos….
Carlos Frota