Caminhos de Cidadania
Morreu em Portugal, há uma semana, como se sabe, o Professor Diogo Freitas do Amaral, personalidade homenageada pelas suas múltiplas facetas de cidadão, intelectual, académico, político e observador atento da vida portuguesa e internacional. E como cristão católico.
Como cidadão e graças à sua superior inteligência e formação ética, Freitas do Amaral marcou um tempo de diálogo, e construiu pontes entre sectores antagonistas, numa comunidade fracturada, como a portuguesa, com o 25 de Abril.
Como intelectual, foi um homem de cultura abrangente, sabendo ler o mundo, muito para além das fronteiras nacionais.
Como académico, formou gerações de juristas em cinco décadas de docência, sempre com uma espantosa claridade e nitidez de expressão, quer oral quer escrita – o que converteu o seu ensino numa gratificante experiência para os seus alunos.
Como político, fundou um partido defensor da Doutrina Social da Igreja, pois nessa tradição se inscreve a corrente da Democracia Cristã Europeia, em que tal formação política se filiava.
E ao assumir tal opção, o fundador do CDS, e os seus amigos mais próximos, de que evidencio Adelino Amaro da Costa, deram um sinal claro de que, não hostilizando as chamadas “forças do mercado”, sobretudo as empresas, viam nelas não exclusivamente a fonte de lucro legítimo para os empresários, mas instrumentos de justiça social, em benefício dos trabalhadores. Segundo a fórmula consagrada de que as empresas não podem ser lugares de exploração dos mais pobres, mas comunidades humanas autênticas, onde os seus membros realizam, pelo trabalho, o seu potencial como Pessoas, como Seres Humanos. Tal como a Igreja ensina, desde o Papa Leão XIII, com a sua encíclica “Rerum Novarum”.
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Segui pela televisão, como toda a gente, as várias reportagens anteriores ao funeral, e vi atentamente as imagens do interior da igreja de Santa Maria de Belém, nos Jerónimos, onde foi celebrada a missa de corpo presente. E ao sabor do que foi filmando o operador da RTP, fui reconhecendo, aqui e ali, rostos de quem marcou, com o seu protagonismo, as diferentes fases da vida portuguesa das últimas quatro décadas e meia. Antigos Presidentes da República, antigos ministros, outros ex-célebres, cada um trazendo (na minha imaginação) a pasta invisível do que fizeram ou não fizeram, segundo o meu julgamento, estritamente pessoal.
E através dessa galeria de retratos, desfilaram pela minha memória muitos episódios da vida portuguesa que marcaram o meu tempo, o tempo da minha geração. Geração que, adulta, fez a transição de um regime político para o outro, com toda a carga emotiva e vivencial dos muitos desafios a superar.
E ao redescobrir feições marcadas indelevelmente pelo tempo, vou lembrando situações em que os admirei ou não, em que os achei felizes ou não nas suas actuações.
Temos todos ideias muito distintas do que valem as pessoas que, num domínio ou noutro, se evidenciam. E julgamo-nos com direito a julgar os respectivos percursos, independentemente da sua origem social, do seu contexto familiar, das facilidades ou obstáculos de que cada um beneficiou ou que teve que ultrapassar, para chegar onde chegou. Mas… NÓS TEMOS ESSE DIREITO de julgar. Porque a elite tem uma função SOCIAL, a de contribuir para o desenvolvimento das sociedades, e é segundo essa perspectiva que deverão ser vistos os protagonistas mais decisivos de cada momento.
Ao cidadão comum pouco interessa saber se foi muito ou pouco heroica a ascensão social (e política…) do Senhor A ou da Senhora B. Isso fica para as suas memórias pessoais, ou para quem se interesse em escrever a respectiva biografia.
Ao cidadão comum interessa saber o que A ou B fizeram pelo bem comum, e fizeram-no melhor que outros, porque constituem a elite. Quer dizer: estudaram mais, prepararam-se melhor, predispuseram-se a assumir responsabilidades para que o comum das pessoas não teria competência.
A história das elites, para as sociedades respectivas, não é a telenovela, com múltiplos episódios, de gente com sucesso, mas o contínuo testemunho e o legado de quem fez mais pelos outros porque recebeu mais, à partida, e tinha portanto mais a dar.
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As sociedades não vivem sem elites. E, a atestar a importância destas, como motores de desenvolvimento social o mais amplo, as elites são estudadas em todas as Ciências Sociais e Humanas, desde a História à Sociologia, passando pela Economia e pela Ciência Política. Mas as elites não surgem por geração espontânea. Há instituições em que florescem, como é o caso as universidades de maior prestígio. E há contextos sócio-económicos que facilitam o seu desenvolvimento, como as famílias prósperas, beneficiando já portanto de um estatuto elevado na pirâmide social.
Estas ideias, muito básicas, são partilhadas hoje pelo cidadão comum que sente como poderosas as forças invisíveis mas bem reais de exclusões injustificadas e de promoções que o são igualmente, no desenrolar das carreiras, em qualquer área profissional.
O grande desafio para a “saúde” das sociedades é pois o de saber como evitar a transformação das elites em clubes privados, vedados a “gente de fora”, levando à criação de castas que, por definição, dificultam a ascensão social dos mais capazes pelo exclusivo critério do mérito.
O nepotismo, o clientelismo e todos os outros ismos, nesta mesma linha de ideias, são os grandes obstáculos à promoção dos melhores. Com os nefastos efeitos que se reconhecem para o bem geral.
Em Portugal, como se sabe, o debate é extremamente actual.
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Como instituição, a Igreja precisa de uma elite, muito especial naturalmente. Uma elite de gente competente… e SANTA.
A Igreja não precisa só de exímios tecnocratas, especialistas em cada domínio do saber, mas gente que testemunhe como com eles cada um desses saberes assume uma dimensão de vida cristã.
Mas este é outro tema, para outro debate.
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O exemplo que aqui trouxe, o de Freitas do Amaral “homem de elite”, está estribado no seu indiscutível mérito pessoal. Dei um enquadramento algo teórico ao meu texto não para lhe diminuir o valor, longe disso, mas para recordar a mim próprio parâmetros básicos, balizas de entendimento, com que gosto de observar o que julgo ser relevante.
A origem social de Diogo Freitas do Amaral é a de gente bem relacionada nos círculos do anterior regime, mas que era reconhecida já pelo esmero da educação e do rigor profissional. Todo o percurso intelectual do futuro professor e político demonstrou à saciedade que ele valeu por si, amplamente, sem precisar de quaisquer bengalas do passado.
Para concluir, gostaria de me referir ao cristão católico que agora desaparece.
Marcelo Rebelo de Sousa, seu amigo pessoal há cinquenta anos, dizia há dias de Diogo Freitas do Amaral que ele foi um homem com coragem em vida – e perante a morte. Sugerindo que esta coragem definitiva completa e confirma a outra, tornando-a autêntica.
O grande desafio à compreensão dos não crentes é o mistério de como um homem de cultura se entrega tão confiadamente, quase como uma criança, poderá dizer-se, nas mãos de Deus. E o que é confusão para muitos, é talvez o mais belo traço do Cristianismo. E o que é? Pois é o despojar-se o homem de tudo o que não é essencial para a grande viagem.
E assim o homem de elite regressa à igualdade fundamental dos filhos de Deus.
Carlos Frota