O lago de Surate e o túmulo do renegado
Em Surate a demora foi de um mês. Como bons muçulmanos, supersticiosos e sempre atentos a estas coisas dos astros, os responsáveis da caravana aguardariam pelo momento mais auspicioso, “quando a lua se mostra ao sol após o seu nascimento”, antes de retomarem a jornada. Não deram por perdido o seu tempo nesse interregno, os nossos padres, diligentemente aplicados no estudo da língua persa. Assinalável cópia de curiosos visitaram-nos. Não era todos os dias que se tinha a oportunidade de ver ao perto gente, nos hábitos, fala, religião e vestes, tão exótica! Além do mais, longe viajara a reputação dos jesuítas, tidos como pessoas de farta sabedoria e piedade, daí os ter convidados à sua corte o todo-poderoso Acbar. Satisfeitos, Acquaviva e companheiros mostravam aos gentios imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria, e aqueles, impressionados, beijavam-nas com reverência, colocando-as depois sobre as suas cabeças. A este respeito tece Monserrate o seguinte comentário: “Tão verdade é que todos os homens naturalmente consideram digno de reverência aquilo que é verdadeiramente excelente, embora muitos sejam frequentemente enganados no seu julgamento e, por obstinação ou preconceito, insolentemente recusam-se a honrá-lo e a adorá-lo”.
Certo dia visitou-os um pársi letrado que naturalmente se envolveria com eles numa acalorada discussão filosófica. Acontece que no decorrer da conversa Rodolfo abriu a caixa onde guardava as relíquias do protomártir Santo Estêvão e de vários outros santos. O pársi, horrorizado, deu dois passos atrás e como se tivesse enlouquecido proclamou que se aquilo eram restos mortais não mais ali poderia permanecer, a menos que arrancasse as vestes e as rasgasse em pedaços. Calmamente e com sabedoria – “no verdadeiro espírito do Cristianismo”, nota Monserrate –, e enquanto fechava a inusitada caixa de Pandora, pediu Acquaviva ao pársi que não se apoquentasse pois “não eram ossos de mortos, mas de vivos”, e assim a polémica conversa pôde prosseguir.
Adiante, no seu diário, Monserrate dá-nos conta da posição geográfica de Surate, nas margens do rio Tapti, cuja foz distava seis milhas da cidade; e ainda da bem fortificada cidadela vigiada por “uma guarnição de duzentos arqueiros montados”. Adornava a cidade um belo lago, o mais belo “de todos os lagos que podem ser vistos na Índia”, rodeado em todo o perímetro por vistosos degraus de mármore e com uma torre finamente construída ao centro, à qual se acedia de barco. Garante o sacerdote que os cidadãos iam lá para se divertir, mas também para dignificar o túmulo de um tal Qhoja Sopharis, “frequentemente mencionado pelos nossos escritores pela sua traição e mau carácter”. Tratava-se de uma estrutura extraordinária, decorada de forma elaborada e cara, junto a uma outra na qual as mulheres depositavam coroas e guirlandas e que assinalava o local de repouso eterno de “um renegado etíope e inimigo do Cristianismo”, líder das tropas de Qhoja Sopharis. O povo reverenciava-o como santo, unicamente, na opinião de Monserrate, porque fora executado por Garcia de Távora, governador de Damão.
Comecemos então por identificar Qhoja Sopharis (também conhecido como Safar Aga ou Rumi Khan), segundo alguns, grego; segundo outros, filho de mãe turca e pai cristão, nativo da ilha de Chios. Qhoja Sopharis fora governador de Surate, tendo, aliás, mandado fortalecer a cidadela devido aos frequentes ataques dos portugueses. Pouco depois da morte de Bahadur Shah, sultão do Gujarate, em Diu, em 1538, Qhoja Sopharis rendeu-se aos portugueses e estes, reconhecendo a sua capacidade, trataram-no bem e nele depositaram confiança. Não obstante, ingratidão e deserção seriam a resposta de Qhoja, que pereceria durante o segundo cerco a Diu, em Junho de 1546. Agora que está revelada a personagem, identifique-se o tal “belo lago”. Na verdade, o Gopi Talav, construído por volta de 1510 por Malik Gopi, influente comerciante e governador de Surate durante o período mogol, a quem é atribuído o desenvolvimento da cidade. Vários visitantes europeus, após a notícia de Monserrate, com espanto ao dito lago se referem.
Descreve-o em 1628 o britânico Peter Mundy como “o grande tanque de Surate”, e numa obra datada de 1631 o geógrafo holandês Joannes de Laet coloca a possibilidade de ter sido cortado a partir de um só rochedo. Em 1638 é a vez do aventureiro alemão Johan Albrecht de Mandelslo salientar a sua vastidão e a riqueza dos degraus que o cercavam, não esquecendo de aludir à torre no meio do lago designando-a erroneamente de “túmulo do construtor desta estrutura magnífica”.
Entre 1662-1663, ao percorrer a região de Surate, o jesuíta português Manoel Godinho, pouco antes de iniciar a viagem terrestre até Portugal, menciona dois poços fora da cidade “usados para fornecer água potável”, na verdade uma referência às duas cisternas do lago. Também o italiano Pietro della Valle regista o uso desse espaço para reter a água da chuva para fins de consumo. Em 1666, o viajante francês Jean de Thévenot chama a atenção para a necessidade de urgente restauro, alerta ignorado pois em 1674 o lago estava seco e em 1717 não passava de uma ruína. Hoje, já sem as muito gabadas lajes de mármore e a torre central, e depois de recentes obras de reabilitação e melhoramentos que lhe acrescentaram luzes e repuxos, o Gopi Talav não passa de local de recreio e nada resta nele que evoque o seu longo historial. Dir-se-á um tanque construído há umas décadas apenas.
Joaquim Magalhães de Castro