Caxemira e os judeus perdidos de Israel
Se batiam certo, no seu todo, os informes relativos aos tibetanos, num específico aspecto apontavam diametralmente para o oposto. É que apesar de habitarem “as alturas dos Himalaias” e contarem com língua própria, não eram o tibetano o povo a quem Plínio chamava de “caxixi”, ou seja, “caxemire”, acrescentando o grego historiador ser ele tribo indígena do interior, “em direcção à terra dos Citas” e, pelos vistos, ainda comedor de “carne humana”. Nunca tal ouvi a respeito do dito povo, de quem, de resto, falarei mais adiante.
Prossigamos entretanto a viagem, acompanhando a comitiva de Acbar nas suas constantes subidas e descidas íngremes entre vales pantanosos e penhascos salientes, por trilho acidentado e perigoso que os leva até Chamba, cidade encaixada na encosta dos Himalaias. Esta, segundo nos informa Monserrate, mantém-se fiel a Acbar e são todos os seus habitantes, à excepção da guarnição mogol, praticantes do Hinduísmo. Agrada ao padre catalão o clima, semelhante ao europeu, assim como o aspecto dos locais: gente alta e magra com cabelos e barbas longas de cor castanha, traços comuns entre muitos dos europeus.
Apesar da compreensível estratégia de progressão a norte – quanto mais perto das montanhas, menores seriam os caudais e, por conseguinte, mais fáceis de transpor – dificultosas e trágicas são as travessias dos rios. Vadeado o Ravi, “que também é chamado Adris”, tendo sido para o efeito construída uma ponte, cedo novo obstáculo aquático, o Chenab, lhes surge pela frente. A região entre o Ravi e o Chenab supera todas as outras em beleza e fertilidade. Não só pela “variedade dos seus jardins” como pelo abundante número de “aldeias e vilas”. Na travessia do Chenab espinhosa se mostra a tarefa. Semanas antes, Mirza Hakim, a fim de atrasar a perseguição do seu meio irmão Acbar, ordenara a destruição de todas as embarcações. Perdem-se na travessia do Chenab – especifica Monserrate – “cerca de quatrocentos homens de todas as categorias”; e o sacerdote espanta-se face a tão volumoso caudal, já que a nascente “não está assim tão distante do lugar onde nos encontramos”. Enganava-se o bom do padre. A fonte do Chenab situa-se no passo de Baralacha La, na distante e inóspita região tibetana do Ladak (Ladaque). Apesar da imprecisão geográfica, Monserrate tinha perfeita noção que todos aqueles rios – olhados num mapa lembram uma espécie de delta interior – desaguam no largo Indo.
Tem o cuidado o nosso aventureiro de realçar as previdências de Acbar em relação ao seu exército, a quem dava dias consecutivos de descanso, aproveitando ele para ir caçar na companhia dos filhos. Confrontados com o Jhelum, cujo leito de tão largo e profundo “até para os elefantes” inacessível se tornava, obrigatória é a construção de uma ponte duplamente reforçada. Lembra o sacerdote que os habitantes destes reinos, os “jats”, consideravam um pecado cortar o cabelo ou a barba, visto serem esses “os principais e distintivos sinais da masculinidade”. Curiosamente, os mesmos pegariam em armas contra o império mogol no final desse mesmo século e no início do seguinte, desempenhando papel importante na divulgação da khalsa, a arte marcial dos sikhs.
Atravessado o Jhelum, nota Monserrate que as montanhas que até aí corriam numa linha ininterrupta desde Deli, “em toda parte chamadas de Himalaia pelos habitantes”, se curvam gradualmente para oeste e se abrem num extenso vale. Como se de um portão se tratasse. Encontram-se, na verdade, nos contrafortes da região de Caxemira, que segundo o jesuíta surge da combinação da palavra Cas, “o nome das montanhas”, e Mir, “um governador”. Informa-nos depois que não há muito tempo, “apenas há cem anos”, tinham sido os caxemires conquistados pelos muçulmanos, adoptando de imediato as suas leis e sistema de governação. Contudo, estes insistem em reafirmar a sua origem judaica. Origem essa, no entender do padre, confirmada pelo seu semblante, modo de vestir e maneira de fazer comércio. “Eram em tudo semelhantes aos judeus europeus”, escreve ele. Também François Bernier, médico francês do Século XVI, e o militar Francis Younghusband, que passou pela região em 1800, encontraram parecenças nas fisionomias dos caxemires e dos judeus, nomeadamente a “pele clara, os narizes proeminentes e o formato de crânio”.
O religioso aproveita para lembrar o seu encontro com os judeus de Lahore, que negociavam roupas usadas, ferragens, sapatos, braceletes, enfim, “todos os tipos de produtos em segunda mão”. Evoca depois a antiga teoria da presença de judeus cativos nas tropas de Alexandre, O Grande, alegadamente deixados para trás quando a expedição encetou o regresso a casa. Seja como for, Monserrate não parece pôr em causa a teoria que considera o povo de Caxemira uma das tribos perdidas de Israel, teoria essa sugerida pela primeira vez por Al-Biruni, sábio muçulmano persa do Século XI. Esta ligação entre Caxemira e o antigo Israel sai reforçada graças aos nomes de certos lugares, como “Tumba de Moisés” ou “Trono de Salomão”, e eu próprio, aquando uma das minhas visitas, tive quem se mostrasse disposto a mostrar-me o “túmulo de Jesus”! Notoriamente em busca de turistas incautos, esse “guia” imposto à força garantia que Jesus vivera em Caxemira, tivera filhos e ali morrera com a espantosa idade de 120 anos! Heresia!
Indo ao que importa, António Monserrate conclui a sua breve dissertação lembrando-nos as características montanhosas daquela região – proporcionadora aos habitantes de um meio útil de defesa, “especialmente contra a cavalaria” – que dispunha no topo de uma planície plana e fértil.
Joaquim Magalhães de Castro