Os padres e o imperador em perigo
Como salientámos na crónica precedente, a amizade entre o imperador Acbar e os jesuítas portugueses cedo levantou a suspeita de que o monarca mogol havia abjurado o Maometismo e planeava tornar-se cristão. Rumores explicáveis pelo facto de Acbar não ter por costume cumprir as orações nos horários indicados nem observar o jejum no mês do Ramadão. Além do mais, frequentemente contava piadas acerca de Maomé, algo de inaceitável para as mentes mais ortodoxas. Chispava uma entre as ditas a quem o imperador elevara da condição humilde à mais alta dignidade e honra, ao ponto até de lhe confiar “a guarda dos seus recursos”. Shah Mansur – assim se chamava essa mente da maior confiança – não podendo tolerar os insultos, na sua opinião, lançados contra o Profeta, não hesitou em morder a mão que o alimentara. Jurou depor o herético convocando para a causa muitos partidários e, para melhor concretizar o seu intento, escreveu uma carta a Mirza Hakim (rei em Cabul, meio-irmão de Acbar e muçulmano fanático) acenando-lhe com a oportunidade única “de ganhar um grande império” e ao mesmo tempo vingar as afrontas lançadas contra o Profeta. Assumia Mansur a liderança do conchavo, assegurando a participação de muitos dos “parentes e amigos”, e, ficasse Mirza ciente, esses muitos da sua inteira confiança estariam prontos a desertar para as suas hostes caso declarasse guerra “ao ímpio irmão”. Acbar havia de ser morto no decorrer da batalha, “por mim ou por outra pessoa capaz de fazer isso com mais facilidade e segurança”, e a almejada vitória ocorreria sem derramamento de sangue, como era desejável. Mansur fez várias cópias da dita missiva, mas uma delas seria interceptada e levada a Acbar. Este, dando provas de elevada magnanimidade, limitou-se a ordenar o encarceramento do conspirador, tendo depois escrito ao meio-irmão aconselhando-o a manter a paz se é que queria ver intacto o seu reino. Um mês depois, tendo em consideração os serviços de outrora, ordenou que o traidor fosse solto – não sem a respectiva advertência – e reintegrou-o no antigo posto, pois era Mansur “ministro inteligente e útil”. Quanto ao irmão Mirza, os recursos que dispunha Acbar permitiam-lhe o luxo de não sentir por ele qualquer temor. O resto dos conspiradores, cujos nomes foram encontrados entre os papéis de Shah Mansur, seriam secretamente advertidos e enviados para diferentes e distantes partes do império, de modo a que não se pudessem encontrar de novo.
Acbar, por natureza simples e directo, intuiu que com este seu gesto aniquilaria de vez a maquinação, embora, pelo sim e pelo não, optasse agora por andar armado. Shah Mansur desmereceria de imediato o perdão agraciado, revivendo a conspiração com a mesma astúcia traiçoeira. Sinal deveras preocupante para os nossos padres que agora, mais do que nunca, corriam risco de vida. Mansur foi preparando o terreno com diligência, procurando sempre minar a credibilidade de Acbar junto dos seus súbditos. Apontou as baterias à cavalaria, organizada de acordo com o sistema de Gengis Khan (recorde-se, antepassado de Acbar) que funcionava da seguinte maneira: os oficiais de patente inferior lideravam dez cavaleiros; os acima deles comandavam cem; os mais acima, mil; e os do topo, dez mil. Ora, isso implicava que na altura do pagamento dos salários confiança total era depositada nas contas apresentadas pelos chefes. Hábil, Mansur conseguiu persuadir Acbar de que esses oficiais o estavam a enganar, obtendo o pagamento de mais tropas do que realmente tinham e contando os soldados de infantaria, ou mesmo os seus próprios servos, como cavaleiros. Portanto, (dizia Mansur), a fim de prevenir a fraude, todo o cavaleiro deveria estar presente com o seu cavalo; os cavalos deviam ser marcados; e se um deles morresse, a sua cauda devia ser cortada e contabilizada. Nenhum empréstimo ou substituição de cavalos devia ser permitido e nenhum devia ser vendido sem a sanção do rei. Além disso – e neste particular residia a armadilha – Mansur sugeriu uma redução acentuado no soldo dos cavaleiros e seus oficiais. Acbar concordou, mal imaginado que um descontentamento generalizado entre as suas tropas se iria traduzir numa rebelião em Bengala.
Acbar, acusado de despotismo, tornou-se altamente impopular em todo o império. E como os rumores da sua suposta apostasia aumentavam, os sacerdotes abordaram-no para saber se ele desejava dispensá-los; pois dizia-se à boca cheia “que ele se arrependera de os ter convidado para a sua corte”. Não era esse o desejo de Acbar; e até reprovou os padres por “estarem com saudades de casa”. Na realidade, os clérigos apenas se inquietavam e frustrados se sentiam por não estarem a exercer o trabalho para o qual haviam empreendido jornada tão longa.
Preparava-se entretanto o inescrupuloso Shah Mansur para surgir como “o campeão do exército”, quando preciosas informações (novas missivas conspiratórias) chegaram ao conhecimento de Acbar. Este não hesita: demite de imediato o conspirador do cargo, priva-o de todas as suas responsabilidades financeiras e remete-o uma vez mais para o local onde nunca deveria ter saído: o cárcere.
Joaquim Magalhães de Castro