O poder dos vinhos medicinais
A estreita Rua dos Negociantes, em Coloane, esteve em tempos repleta de pequenas lojas de retalhistas chineses. Sobrevivem algumas delas. É o caso da loja de venda de vinhos medicinais Hai Lek, diferente de todas as outras, pois exibe num escaparate frascos e boiões contendo os mais estranhos ingredientes, como serpentes e pénis de cão. O seu proprietário, o senhor Hoi Choi Sang, nasceu em Cantão e veio para Macau em 1957, tendo-se instalado na ilha de Coloane. Este homem de pequeno porte e olhar vivo informa que o local onde exerce hoje o seu negócio era «um restaurante de comida chinesa, abandonado já há alguns anos». Palavras que reflectem uma realidade sempre presente. Nessa vila são várias as casas tradicionais chinesas em estado de abandono ou semi desabitadas. Os senhorios vivem (na grande parte dos casos) em Hong Kong e usam-nas esporadicamente quando visitam o território. Entretanto, vão degradando-se.
Hoi Choi continuou a tradição da família, neste caso, do pai que sempre negociou mezinhas orientais, sobretudo vinhos medicinais. «Antes de vir para Macau tive um estabelecimento em Songshan, pequena povoação de Guangdong onde vivi grande parte da minha vida», diz-nos Hoi enquanto acende um cigarro, o primeiro dos vários que acompanharam a nossa breve conversa.
Preenchem o interior do estabelecimento vasos de cerâmica de diâmetro e dimensões gigantescas a fazer lembrar uma cena das Mil e Uma Noites, embora sejam oriundos da China. Na montra, frascos de tamanhos diferentes contendo cobras, galinhas do mato e órgãos genitais de indiferenciados animais. Tudo isso conservado em álcool. Indicado para combater dores provocadas pelo reumatismo, «além de ser um excelente revigorante para os convalescentes», o vinho de cobra é a mais popular de todas essas mezinhas. Interrogado acerca da origem dos répteis, o senhor Ho garante que «as serpentes foram trazidas da China. Nenhuma foi apanhada aqui». Tem como fornecedores, ao que parece, os pescadores da Ilha da Montanha. O “gao pin” (vinho de pénis de cão) é bom para os rins e, como afrodisíaco, «oferece resultados satisfatórios». Já o “mo kai” (vinho de galinha negra do mato) é, acima de tudo, um revigorante do corpo em geral. O galináceo é enfrascado, «com penas e tudo», juntamente com pedaços de gengibre e «um pouco de pele da pata, para evitar os maus cheiros». O afamado Joseph Healing Oil, especialmente concebido para as pisaduras mas receitado também para o reumatismo e as dores musculares, ocupa, como seria de esperar, lugar de destaque.
O “yeok tsao” – literalmente, “vinho medicinal” – tem a reputação de ser um excelente tónico e de aumentar a quantidade de sangue no organismo humano, sendo especialmente indicado para quem perdeu uma quantidade desse líquido vital na sequência de um acidente. Deve ser bebido sempre que se necessite ou se deseje. «Não existe prescrição específica quanto à quantidade a tomar», esclarece o senhor Hoi Choi Sang.
O interior da loja Hai Lek é assim para o extravagante. Mais parece a cave de um alquimista. Numa das paredes de tijoleira cinzenta vêem-se filas de garrafas vazias com rótulos representando figura humanas e pêssegos, «o fruto que simboliza a longevidade na tradição chinesa». Serviram outrora para armazenar o vinho medicinal, agora não passam de simples elementos decorativos. Encostado à parede do fundo, chama-nos a atenção um enorme altar onde o incenso não pára de arder e as ofertas se renovam dia após dia. De olhar aguerrido e empunhando uma fulgurante espada a incensada divindade protectora dá-nos a impressão de ter acabado de matar os animais que ali estão à espera de compradores. Numa prateleira lateral, garrafões de cinco litros de vinho português, vazios, servem de vasilhame para as encomendas maiores. Mais abaixo, sacos plásticos, a esmo, servirão para aviar os fregueses.
«Um destes dias vieram até aqui uns conterrâneos seus. Tiraram fotografias e compraram vinho medicinal para levar para Portugal», realça Hoi Choi Sang. Para ele, contudo, é absolutamente indiferente que os estrangeiros se interessam ou não pela medicina tradicional chinesa. Tem como clientes habituais vizinhos seus, algumas pessoas de Macau e outras de Hong Kong. «Aqui há uns anos tinha empregados. Hoje dispenso-os. Eu e a minha esposa damos conta do recado». Diz isto com um certo orgulho, embora transpareça na frase algum desencanto. Aos jovens de hoje não interessam as velhas receitas dos avózinhos, pois lhes dá repugnância tais mistelas milenares. «Os comprimidos são mais atraentes e bem mais fáceis de tomar», conclui o chinês.
O estabelecimento Hai Lek serve também de boteco. Enquanto falamos, entram alguns trabalhadores da construção civil que aproveitam a hora do almoço para bebericar um copinho de “mai tsao”, um vinho de arroz de fabrico local. Os vasos que albergam o líquido alcoolizado, pronto a servir, estão ordenados sob uma prancha de madeira junto ao balcão, que suporta vários sacos plásticos contendo areia, hermeticamente fechados, destinados a tapar os bocais dos vasos de cerâmica de forma a evitar que o álcool se evaporize. Os preços das bebidas dependem do tamanho do frasco e do tipo de produto. Uma coisa é certa: não são caros.
A nossa conversa é interrompida com a chegada da esposa de senhor Hoi, que lhe traz sempre o almoço àquela hora. Não quisemos incomodar. O nosso encontro fica por ali.
Joaquim Magalhães de Castro