Inverno de valores

PAPA FRANCISCO: AINDA O RESCALDO DA VIAGEM AO CAZAQUISTÃO

Inverno de valores

O poema sinfónico “Nas estepes da Ásia Central” é uma das peças mais célebres de Alexander Borodin e também uma das obras mais descritivas e simbólicas da História da Música. Temos a sensação de contemplar a imensidão da estepe, cruzada por uma caravana que avança, com passo majestoso, de um extremo ao outro do horizonte. A caravana começa quase indistinta e concretiza-se, com motivos cada vez mais fortes, mais ricos e variados, à medida que se aproxima de nós. Fechamos os olhos e julgamos sentir os solavancos das rodas na aspereza da estrada, o baloiçar da carga, o movimento das pessoas e dos animais. Sempre ao mesmo ritmo, a caravana começa a afastar-se, avançando pela estepe. Aos poucos, as harmonias fundem-se, os sons ecoam naquele espaço infinito, perdem-se na longura. Quando o poema acaba somos capazes de descrever aquela paisagem extraordinária.

Aprendi que este poema foi escrito para celebrar patrioticamente os 25 anos do Czar Alexandre II (1880) e que simboliza o avançar poderoso do Império Russo, atravessando um mundo de beleza infinita. Hoje quase que lamento terem-me informado, talvez preferisse não saber.

Em qualquer caso, foi este o imenso Cazaquistão, actualmente habitado por inesperadas cidades de arquitectura futurista, que o Papa Francisco visitou de 13 a 15 de Setembro. Reuniu-se com os líderes religiosos mundiais e conviveu com os cristãos e com muitos muçulmanos do País que também o quiseram ver e ouvir. As conclusões do congresso sublinharam que respeitar e amar Deus é o caminho para alcançar a paz entre os homens. A catequese do Papa, em encontros e homilias, abordou muitos temas, principalmente relacionados com a vida cristã e a responsabilidade evangelizadora da pequena comunidade católica do Cazaquistão.

Aquele território remoto acolheu a catequese do Papa com a frescura de quem recebe um anúncio jubiloso, que vale a pena ouvir. Paradoxalmente, o mundo ocidental, reagiu ao contrário, com desinteresse, com cansaço. A generalidade da Comunicação Social europeia nem deu conta do que o Papa disse, apesar de algumas mensagens importantes serem dirigidas especificamente a este continente exausto, sem força para ouvir falar de Cristo.

No avião de regresso a Roma, Francisco falou aos jornalistas dos caminhos errados do Ocidente, da falta de ideais mais generosos, do desprezo pela vida das pessoas, do “Inverno demográfico”, da decadência dos costumes. Um jornalista concretiza: «– E acerca da eutanásia?…». A resposta foi fulminante e clara: «– Matar não é humano. Sim, matas com motivações… no final, matas cada vez mais e mais. Deixemos o matar para os animais selvagens».

Fazia falta que alguém ouvisse isto em Portugal.

Falou das perseguições na Nicarágua, que expulsou o Núncio e as Irmãs da Madre Teresa de Calcutá, e que mantém bispos presos; abordou também outros países da América Latina, a China, a guerra na Ucrânia, as lutas entre o Azerbaijão e a Arménia, a guerra interminável da Síria, as perseguições no Norte de Moçambique, a Eritreia, a Etiópia, o povo Rohingya… Falou também das derivas da Igreja na Alemanha, onde alguns bispos se perdem em construções ideológicas, em vez de serem pastores no meio do seu povo.

Pois teria valido a pena a Comunicação Social ter prestado mais atenção.

José Maria C.S. André 

Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

LEGENDA:Fórum dos líderes religiosos no Cazaquistão

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