Memórias e Fortalezas no Leste de África – Parte 9

Rumo ao Norte ao som da Marrabenta

Preocupado em retratar o máximo num curto espaço de tempo, não me dou conta do correr do tempo. Depois destas duas noites bem dormidas estarei pronto para nova arrancada, costa acima, rumo a duas outras caras metades de uma mesma rede comercial que esteve na origem da identidade swahili, fruto da miscigenação de tribos africanas de origem bantu com os mercadores árabes, indianos ou malaios, e em relação aos quais os portugueses conseguiriam notório ascendente. Quiloa e Mombaça são os próximo portos de atracagem.

Viajar por terra no leste de África requer sono leve e um madrugar voluntarioso, caso contrário não se avança no terreno, que isto por aqui é chão que nunca mais acaba. Quatro da manhã parece-me uma boa hora para começar o dia. E mesmo que não me parecesse teria de me levantar por essa altura na mesma, pois luxos como camionetas a horas certas e regulares é coisa que não há nestas paragens.

Para chegar a Quiloa, onde me espera a fortaleza mandada construir em 1506 por D. Francisco de Almeida, necessito de cumprir as etapas Pemba, Mocimboa da Praia e Palma, a mais setentrional povoação da província do Cabo Delgado, na fronteira com a Tanzânia.

Esqueçamos os transportes directos. Doravante passarei a viajar na caixa de carrinhas, de encruzilhada em encruzilhada, intervalos com longas horas de espera, fundo de picada no horizonte e muitos percalços pelo caminho. Tão certo como estar aqui a escrever no alpendre da Casa Branca, aguardando o veículo que faz a recolha dos visitantes alojados nas pensões e casas de hóspedes e depois os depositam no outro lado da ponte istmo, onde está uma camioneta um pouco maior com destino a Nampula e que parte diariamente antes de o nascer do dia.

 

DESCONFORTO E MARRABENTA

A carrinha chega às quatro horas e depois de umas quantas voltas pela ilha deposita-nos do outro lado do canal de Moçambique. A camioneta para Nampula está cheia de gente com roupa colorida e a marrabenta explode nas colunas de som instaladas na viatura. É com esta alegria que seguimos até ao cruzamento onde terei de aguardar uma carrinha de menor dimensão, vinda de Nampula e com destino a Pemba. Já lá estão outros passageiros, alguns deles dançando no meio da rua, aproveitando o transístor de uma barraca ali montada. Assim é em África. Qualquer momento é bom para manifestar a boa disposição.

Uma meia hora depois consigo encaixar-me numa viatura repleta de gente rumo a Pemba. E se inicialmente julgo que a taxa de ocupação está completa, bastam algumas dezenas de quilómetros para me aperceber da sua capacidade, neste caso, é ilimitada. No interior desta Toyota Super GL cabe sempre mais um passageiro e mais um saco, nem que para isso tenhamos de ir uns em cima dos outros. Não importa. Sinto-me bem-disposto e cheio de energia. Situações destas fazem-me sentir vivo. Só quando se prolongam por muitas horas de seguida é que se tornam desagradáveis, primeiro, e depois insuportáveis, podendo atingir o limiar do desespero. Digamos que as situações de extremo devem ser sempre servidas em pequenas doses, para que tenhamos tempo de as digerir devidamente.

 

CAPIM ATÉ MOCIMBA DA PRAIA

A viagem é marcada pela já habitual estrada de asfalto apertada pelo capim com paragens breves em pequenas aldeias onde sai gente e entra gente e no processo há que rearranjar as bagagens, o que obriga a improvisos que só visto. Nessas paragens, como já vem sendo hábito, somos abordados por miúdos e mais graúdos que vendem bananas, anonas, nogado de amendoim, caju torrado servido em pratinhos de alumínio ou então sandes amontoadas em cestos. São todos rapazes com t-shirts das mais representativas equipas de futebol europeias, à excepção de uma rapariga que traz à cabeça uma travessa com fatias de pão-de-ló. Olham-me todos com um misto de espanto e curiosidade, mas sempre com muita simpatia. Sorriem naturalmente e não se incomodam que lhes tire fotografias.

Ao lado, reparo uma espécie de abrigo com chão de cimento, tecto de zinco e a uma placa com a enigmática frase: “Atenção. Nós trabalhamos com dinheiro de alívio da pobreza. Obrigado”.

Maciços de rocha pontiagudos com várias dezenas de metros, verdadeiros morros onde cresce alguma vegetação, caracterizam a paisagem até Chiure, onde a paragem é mais prolongada e permite um esticar de pernas. “Bem-vindo à vila de Chiure. Sinta-se em casa”, convida a edilidade. Quem parece sentir-se em casa é a IURD, que também aqui tem sede, junto à estrada, paredes meias com um ambulatório e uma loja de venda de roupa em segunda mão.

Nova vaga de vendedores de ocasião. Aos produtos habituais juntam-se agora o inhame, as abóboras, os pepinos, os amendoins, o frango assado e um outro por depenar que um homem traz pendurado no guiador da sua bicicleta.

Poucos quilómetros depois de Chiure a estrada bifurca-se e eu, por não ter consultado o mapa, continuo a bordo quando deveria ter-me apeado precisamente nesse cruzamento. Só me dou conta do erro ao avistar as afamadas praias de Pemba, tendo feito entrementes uns oitenta quilómetros desnecessários e perdido um tempo precioso. Saio da viatura logo que posso e atravesso para outro lado da estrada. Não tardo a ver-me de novo numa outra caixa de carrinha percorrendo os oitenta quilómetros de plantações de palmeiras a perder de vista, mas agora em sentido inverso. O motorista deixa-me no cruzamento para Moçimba da Praia onde, dado a adiantado da hora, sei que são escassas as possibilidades de arranjar transporte esse dia. Quando digo adiantado da hora, não significa que seja tarde – são apenas 14 horas, mas que aqui é sinónimo de impossibilidade de continuação da viagem.

 

OS CONSELHOS DO SENHOR BOAVENTURA

Não sou o único a aguardar transporte para Mocimba. Estão ali dois aldeões, um rapaz e uma rapariga, muito calados, sisudos até, e um homem que imediatamente mete conversa comigo. Chama-se Boaventura e tem como destino uma povoação que fica a umas dezenas de quilómetros antes de Moçimba da Praia.

Não posso deixar de mencionar os sanitários públicos que temos à nossa frente – algo de extremamente raro nestas paragens – e que tenho o prazer de poder utilizar. Constato que estão impecavelmente limpos e nas paredes há desenhos muito explícitos a respeito de uma coisa tão importante como a higiene. Por cima de um grande vaso de barro com água, qual ânfora romana, a frase: “lave as mãos com sabão”. É caso para dizer: só não aprende quem não quer.

Permanecemos ali umas boas horas, sem avistarmos uma única viatura. Inesperadamente vemos surgir na curva, vinda da estrada de Pemba, uma pick-up de caixa aberta que estaciona numa ruela ao lado. Um dos seus ocupantes vem na nossa direcção e em voz baixa, como se estivesse a fazer algo de ilegal, pergunta-nos, a mim e ao Boaventura, se queremos ir para Moçimba. Claro que sim. Discutimos o preço e eis-nos na parte traz da viatura, satisfeitos da vida. Uns metros adiante, a viatura volta a parar, e o mesmo homem que falara connosco autoriza o casal de aldeões a subirem também para a caixa. Realmente… não tinha sentido deixá-los pendurados, tanto mais que as boleias aqui são sempre pagas e quatro passageiros extra são uns bons meticais a mais, ou, à falta deles, um outro valor qualquer, pois por aqui ainda se podem pagar os serviços em géneros.

Só depois de nos pormos em marcha é que percebo o secretismo em torno da nossa “operação de resgate”. A carrinha, pertencente à municipalidade de Pemba, transporta ladrilhos, três caixilhos de alumínio para pendurar cortinas e quatro homens com a missão de preparar um palanque condigno para o presidente moçambicano, que – proximidade eleitoral o exige – visitará em breve a região, nomeadamente a povoação de Palma, junto à fronteira da Tanzânia. Quando lhes digo que esta é uma óptima oportunidade para o Chefe de Estado se inteirar do estado lastimoso das estradas locais, responde-me um deles:

«– Infelizmente não terá essa oportunidade, pois deslocar-se-á de helicóptero».

Joaquim Magalhães de Castro

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