A casa do vate e o Escondidinho
Na praia deserta da Ilha de Moçambique várias crianças apanham os moluscos que ficam à tona da areia lamacenta e um pescador puxa o barco para terra utilizando a âncora amarrada a uma longa corda. Regressa, passados uns minutos, para carregar a embarcação com sacos de serapilheira, antes de se fazer de novo ao mar.
Mais adiante, assisto ao recolher da rede, por norma uma tarefa colectiva, mas os homens envolvidos na labuta não parecem muito agradados com a minha presença, certamente cansados de mirones estrangeiros. No final, o resultado da pescaria revela-se magro, bastante magro mesmo. São cada vez mais os pescadores que recorrem a trabalhos alternativos para compensar os fracos rendimentos obtidos com a faina do mar.
Ao largo, vela desfraldada, passa uma embarcação pejada com turistas. Faço a volta completa da fortaleza de São Sebastião, toda ela assente no coral. A primeira fortificação aqui construída, muito rudimentar ainda, seria substituída por uma outra em 1546. A partir de então, as construções e reconstruções não parariam, pelo menos até ao século XVIII. Durante algumas horas, o tempo que a maré vaza o permite, usufruo de uma simpática praiazinha privada, tendo com única companhia o mar, os zambucos que cruzam ao largo e o exterior da lindíssima capela manuelina, onde ao fim de algum tempo acaba por se perfilar o já referido guarda. Espera talvez que eu acabe por concordar com o arranjinho proposto, ou, na pior das hipóteses, lhe ofereça um pacote de cigarros.
CASA DO VATE
Em frente ao forte, deparo de novo com os vendedores de colares de missanga e moedas antigas, desta feita acompanhados por indivíduos mais velhos que tentam despachar cestos de verga com conchas coladas na sua base e barquinhos de madeira. A verdade é que não lhes sobram alternativas, os visitantes são ainda poucos na Ilha de Moçambique.
Regresso à pensão disposto a visitar a tão falada casa onde, entre 1567 e 1569, viveu Luís Vaz de Camões. Situa-se a poucas dezenas de metros, numa dessas vielas tortuosas que se insinuam pela cidade de pedra e cal. À entrada, motivos decorativos florais e geométricos fazem lembrar os templos hindus de Bali. O habitual portão de madeira profusamente decorado, peça exemplar da arte indo-portuguesa, foi substituído por uma simples chapa de zinco. Dizem-me que o original foi para restauro, mas isso não me convence. Se calhar levou sumiço, vendido por tuta-e-meia a algum negociante de antiguidades sem escrúpulos, como o são a maioria, pois se não o fossem deixavam estar os objectos de arte nos locais onde pertencem.
Partilham o espaço onde viveu o poeta uma família de cinco e duas árvores de papaia. Desta vez entro sem hesitar, embora peça previamente licença, nesse e noutros interiores de moradias similares, abandonadas ou ocupados por famílias de emigrantes originárias da vasta província de Nampula. Partilham com galinhas e cabras os pátios e as arcadas cobertas com colunas e ogivas manuelinas, a lembrar os castelos em Portugal, e parecem desconhecer o conceito de propriedade privada: a porta está sempre aberta a quem vier por bem.
Quase sem me aperceber vejo-me de novo no lado ocidental da ilha, numa praça desconhecida, com alguns edifícios públicos restaurados, entre os quais uma escola primária e um estaleiro onde flutua uma bandeira da Frelimo. Flanqueiam o portão de entrada dois canhões portugueses e uma gigantesca âncora na qual estão sentados três rapazes sem nada que fazer. Um deles pergunta-me se não lhe posso arranjar um visto para Portugal. Gostaria de estudar em Lisboa e aí ficar, se encontrasse trabalho.
No interior, junto a um aglomerados de edifícios semi-abandonados, estão diversas carcaças de lanchas em fibra de vidro e um barco de madeira ainda em construção, com recurso a métodos tradicionais, embora não existam sinais de actividade recente no estreito areal onde repousa o esqueleto da embarcação. Que belo sítio daria para uma pousada! Por breves momentos imagino um cenário nada desejável: a ilha transformada num imenso aldeamento turístico, desprovida da sua alma, é certo, mas ao menos com a garantia da preservação do seu património ancestral.
O ideal era que os habitantes locais continuassem a viver na parte cristã e não viessem a ser desalojados das casas à medida que estas vão sendo recuperadas, como provavelmente acontecerá no futuro, transformando-se assim a cidade de pedra num gueto de turistas europeus e brancos, e a zona macuti numa reserva de nativos. Já existem indícios disso, embora não possamos deixar de louvar iniciativas como o Âncora D’Ouro ou o Escondidinho, o hotel restaurante mais reputado da ilha. Lojas de comércio são ainda raras – a Casa Nizar, e pouco mais – mas já começa a aparecer um ou outro bar mais modernaço, pertença de franceses ou italianos, que sempre costumam antecipar-se neste género de iniciativas.
PLACAS ELUCIDATIVAS
Em frente ao Escondidinho, a bela “Casa feita no anno 1700, por ordem da Augusta Rainha…” é exemplo do papel que deve ser reservado aos edifícios públicos, ficando a tutela deste valor patrimonial, neste caso, ao cuidado do Ministério de Ciência e Tecnologia.
Afixado a uma árvore o aviso “Recinto Hospitalar. Proibido Fumar” lembra-nos que, por mais incrível que possa parecer, o centenário hospital da ilha permanece em funcionamento. Um grupo de rapazolas armados de varapaus e pedras sai da porta principal do vetusto edifício dando caça a um cão que seguramente tem os minutos contados, pois cometeu o imperdoável “crime” de ter matado uma galinha.
Por cima das portas com bonitos batentes da igreja em frente, similares às das casas de cidades como Espinho ou Porto, podemos ler: “Foi reconstruído esta egreja no anno de 1896 sendo prelado de Moçambique D. António José de Sousa Barroso, bispo titular D’Himira”. Mesmo ao lado, uma lápide (muito parecida às lápides funerárias que vi na igreja de Sirião ou aquelas arrecadadas num barracão nos arredores de Bago, na Birmânia) informa que “Joaquim do Rozário Monteiro dedicou esta capella no anno de 1801”.
No minúsculo mercado de peixe local exibem-se alguns exemplares coloridos da pescaria artesanal normalmente efectuada, mesmo junto à Fábrica de Sabões de Said Aly e à Conservatória do Registo Notarial e a uns cinquenta metros da sede da Frelimo. Em frente, num jardim, a denominada Estela Memorial da Escravatura lembra o sofrimento dos escravos, iniciativa da ilha da Reunião com apoio da edilidade local e a embaixada francesa (como se a França estivesse isenta de culpas nesta matéria). Despeço-me aqui de mais um fim de tarde, entretido com algumas páginas da História da Expansão Portuguesa, a minha leitura favorita neste périplo.
A colonização do leste da costa africana foi muito mais facilitada devido ao tráfego das naus da Carreira da Índia, que na Ilha de Moçambique faziam paragens de conveniência ou paragens forçadas. E os portugueses não eram os únicos visitantes. Há décadas que sulcavam estas águas navios árabes, persas, malaios e até chineses, pois a frota do almirante Cheng Ho esteve aqui em 1421, o tal ano que poderia ter mudado mundo mas não mudou. Tivesse o eunuco a ousadia, autorização ou os meios para atravessar a ponta de África para ter de se ver com o bem mais revoltoso Atlântico. Assim, desde cedo os portugueses depararam com um comércio organizado, digamos que, como escreve Jaime Cortesão, «encontraram já realizado, no Índico, o trabalho que se tinham esforçado por fazer no Atlântico», daí a crescente necessidade de abrir caminho para o interior em busca das riquezas na sua fonte de origem.
A partir de Melinde, deixaram de haver descobertas, tão só constatações, guiados por pilotos locais – árabes, malaios, chineses – utilizando embarcações nativas ou adaptando-se a elas. Só assim se compreende que em apenas quinze anos tivéssemos concluído todo o périplo asiático. A excepção no campo das descobertas são a Nova Guiné, o Japão e a Austrália, mas essas não contavam para esta actividade comercial.
Joaquim Magalhães de Castro