A busca de Hashnabad e outras inquirições
Conduzir nas estradas do Bangladesh, em cujas bermas se acumulam montanhas de lixo – embora não pareça, fonte de rendimento para muitos –, chega a ser uma verdadeira roleta russa. Senhores absolutos do asfalto são-no os camionistas e seus atrelados, sem esquecer os incontornáveis homens dos “tuk-tuks”. Temos como destino a cidadezinha de Hashnabad e como não contamos com a ajuda de um GPS, obrigatório se torna o inquérito a quem circula nas bermas ou aí ociosamente aguarda que o dia passe. De nada nos irá valer, como adiante veremos.
Somos enviados para ali e para acolá, e por diversas ocasiões bailamos ao som desse fandango. Esta gente indica seja lá o que for, não pode é perder a face. E assim, com o mais cândido dos sorrisos, manda o incauto do visitante para o sítio errado se preciso for. Admitir que não sabe, que não tem a mínima ideia daquilo que se pergunta, é que não pode ser. Finalmente, confirma-nos um “tuk-tuker” de farta bigodaça que chegados estamos à tão ansiada Hashnabad, não obstante, quando o amigo Dhiman (ex-empregado de um dos membros da nossa equipa, no tempo em que este negociava em têxteis no Bangladesh) inquire pela “grija”, ou seja, a igreja, a coisa complica-se. Solícito, o homem do velocípede pergunta a um comparsa e este a um terceiro, mas todos encolhem os ombros. «Igreja? Aqui? Como assim?». Verdadeira estupefacção é o que podemos ler no seus plácidos semblantes. E de nada nos serve tirar da manga as ajudas “Christian” e “Portuguese”… Provavelmente viemos parar a uma outra Hashnabad, o que não seria de espantar dada a quantidade de lugares com o mesmo nome, e isso num perímetro geográfico bastante circunscrito.
Não encontramos a nossa Hashnabad, mas no processo de inquérito – e após atravessar uma daquelas pontes de ferro militares erguidas pelos britânicos, algumas delas já centenárias – deparamos com um sujeito com uns daqueles olhos cor verde-azeitona bastante frequentes entre os luso-descendentes asiáticos. Logo se impõe a fotografia da praxe. Pergunto-lho pelo apelido e o Al Thab com que ele me responde confirma o que já suspeitava. É muçulmano, claro está. Bem mencionava o arcebispo D. Rozario a quantidade de portugueses que ao longo dos séculos se foram casando com as mulheres locais, convertendo-as no processo. Também aconteceu o inverso. Muitos foram os comerciantes europeus a optar pelo Islão, quantas das vezes por questões de conveniência. No final da conversa, e para não melindrar os amigos de Al Thab, solicito uma foto em conjunto; só então noto que também um dos seus compinchas pode reivindicar uma costela beirã.
Eis-nos de novo a atravessar um largo rio com umas quantas embarcações em plena marcha rumo a uma série de altos-fornos para cozedura de tijolos que lhe vão servindo de pano de fundo a fazer lembrar a capa de um dos álbuns dos Pink Floyd, não recordo agora qual. As pontes são excelentes locais de discreta observação. E mais isto observo, feito mirone de passagem, do alto de uma delas: Numa das margens está acampada uma família de ciganos – encantadores de serpentes, a julgar pela caixa de onde vejo sair duas cobras, que minutos depois são levadas até ao rio para serem lavadas. Delicada, a operação. O encantador segura sempre o réptil pela cauda e vai esfregando-lhe o corpo com água, retirando-lhe a escama gasta que fica a boiar. O bicho parece não se importar; dir-se-ia até sentir algum prazer com isso, se bem que ensaie algumas escapadelas, prontamente refreadas pelas mãos experientes do tratador. O seu filho, ao lado, muito atento, parece estar a aprender a técnica. Uns metros à frente há quem trate da higiene pessoal: mulheres, integralmente vestidas, mergulhadas na água acastanhada, que minutos antes tinham posto a corar um estendal de panos no relvado onde está montada a tenda familiar feita de plástico, lona, vimes e toda cosida com arames. Junto a ela quatro homens jogam às cartas. Provavelmente a dinheiro, pois vão apontando números num pequeno caderno.
Prosseguimos caminho, durante infindos quilómetros no encalço de uma decrépita camioneta com passageiros extra montados no tejadilho, enveredando agora por estradas bem mais apertadas vigiadas por pequenas povoações abrigadas à sombra de frondosas árvores. O nosso condutor parece não ter a mínima ideia para onde vamos. Um jovem transeunte que um rosário ao pescoço identifica como nazareno, confirma que não é ainda esta a Hashnabad que procuramos, embora seja povoação maioritariamente cristã. Aí somos simpaticamente recebidos pelo pároco local, um jovem formado nos seminários de Roma, onde, segundo nos diz, conviveu com muitos dos seus pares vindos de países de língua portuguesa. Comunica connosco num italiano perfeito e não nos deixa ir embora sem antes nos preparar uma merenda na cozinha da casa paroquial. Diz-nos que também por aqui há inúmera gente com apelido português – Ribeiros, Gomes, Rozarios, Costas, Da Costa, De Cruz, Gonçalves, Assunção, Serrão, Da Silva, Correia – e, por engano, menciona um tal Fraser, corrigindo, «esse é arménio».
Estamos agora em pleno mundo rural, parcialmente católico, pois vemos muitas mulheres de cabeça descoberta (embora também se avistem mulheres inteiramente cobertas de vestes pretas), retalhado por pequenos canais cobertos de nenúfares e outras flores aquáticas que ligam aldeias e que se quando em vez são cruzadas por românticas pontes de bambu, um cenário ideal para perdermos as horas de que infelizmente não dispomos, pois a tarde vai avançando. Somos despertados por embarcações propulsionadas por pequenos motores rasgando os nenúfares que miraculosamente voltam à posição inicial após a sua passagem. Por vezes, a estrada é tão só um simples amontoado de areão e também por aqui há que abrandar e prosseguir a dez à hora na peugada dos riquexós, que voltam de novo à ribalta.
Os barcos daqui, muito mais alongados que os de Daca, embora não menos coloridos, servem frequentemente de habitáculo permanente a inúmeras famílias, provavelmente o ano inteiro. O rio é a sua casa e zona de conforto. Numa breve paragem para comprar fruta apercebo-me que chamam aqui à laranja “malta”. Será que tem a ver com a ilha, seguindo a lógica de, no mundo árabe e na Turquia, chamarem “portugal” à laranja? Uns quilómetros adiante, nova “distracção” atrasa-nos a viagem no exacto momento em que ouvimos o derradeiro canto dos cacizes antes do anoitecer. Está perante nós, sentado num tear manual, de tronco nu e barba tingida a hena, um representante de um dos sectores mais importantes da economia do Bangladesh e a principal razão da nossa estada nesta região ao longo dos séculos XVI e XVII. O ritmo sincopado de pés e mãos do artesão e o complexo emaranhado de fios do tear deixa-nos mudos e quedos. “Trac-tac-trac-tac”, hipnótica música para os ouvidos, “trac-tac-trac-tac”.
Seguem-se ainda mais algumas pontes de bambu e o constante grasnar dos corvos acompanha-nos até retomarmos a estrada principal que nos deposita à entrada de Hashnabad. Desde logo me chama a atenção um edifício em ruínas, de óbvia traça lusitana, com as paredes rebentadas pelas potentes raízes de uma figueira-de-Bengala. É ao lusco-fusco que deparamos com a bela fachada da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a matriz da paróquia de Hashnabad. No terreiro em frente, alguns homens sentados no relvado, todos de apelido Gomes, de imediato nos informam, feitas as apresentações, que foram os portugueses que construíram essa igreja cujos segredos a noite por enquanto esconde.
Joaquim Magalhães de Castro