A capela dos “Padres Santos” em Agra
Nos primórdios do século XX (1906) o jesuíta belga Henry Hosten, prestimoso investigador com inegável experiência no terreno, compilou um livrinho onde faz um apanhado das origens e da actividade de uma série de missionários que durante os séculos XVII e XVIII passaram pelo Norte da Índia. Socorrer-se-ia, para tal, das investigações precedentes de um membro da ordem dos carmelitas da missão de Lahore que ele designa simplesmente como “Fr. Felix”, compilador de uma lista de jesuítas e decifrador das inscrições das suas tombas em Agra, segundo Hosten, “valioso manual de Arqueologia Cristã, com o qual podemos decifrar os epitáfios meio apagados nas lápides e evocar os nobres ideais que eles, dos seus túmulos, nos continuam a transmitir”. Admite o prelado belga o elevado grau de dificuldade no resgate de tão importante legado já que a maioria dos registos missionários perderam-se irremediavelmente durante a perseguição cristã iniciada com Shah Jahan e perpetuada no reinado do seu sucessor Aurangzeb. E só se poderá reunir o pouco que resta “com infinitos sacrifícios e muitas despesas”.
Esquecidos ficariam entretanto os nomes próprios dos pioneiros da causa católica no Norte da Índia. Na verdade, chega a surpreender a capacidade de resistência das lápides sobreviventes, testemunhas silenciosas dos feitos dos sacerdotes de antanho, às agruras do tempo e às patifarias dos homens. Uma carta do padre Félix dá-nos a conhecer três necrópoles católicas em Agra: o antigo cemitério católico, da época de Acbar, situado em Manza Lashkerpur; o cemitério comummente designado de “Padritola”; e um terceiro, hoje abandonado, a cerca de uma milha a norte de Manza Lashkerpur, numa povoação cedida aos missionários por Jahangir. Hosten aventa a possibilidade de situar-se também por ali o bairro “Firingtola”, local de residência dos mercadores europeus. Em meados do século XIX, o inglês Frederic Fanthome – autor do livro “Reminiscences of Agra” (1895) onde expressa a sua convicção de que Acbar tinha uma esposa cristã chamada Mary, cuja influência sobre o imperador havia sido subestimada pelos historiadores – tentou decifrar algumas das inscrições, mas sem grandes resultados.
Socorrendo-se dos Arquivos Missionários de Agra, o padre Félix – na altura capelão em Sardhana, no Uttar Pradesh – complementaria o trabalho de Fanthome, trazendo à luz várias inscrições até então esquecidas, mais propriamente, no interior de um elegante edifício octogonal, ainda em bom estado de conservação, encimado por uma cúpula mourisca. Chamam-lhe “Capela dos Mártires” ou “Capela dos Padres Santos” e foi originalmente construída em memória do comerciante arménio Khoja Mortenepus cujo epitáfeo, de 1611, é o mais antigo da capela. O sepulcro de Khoja ocupa naturalmente uma posição central, na parede do lado direito ao lado dos túmulos do bispo Zakur de Tabriz (1615) e quatro outros clérigos arménios. No lado esquerdo assenta o túmulo do jesuíta Marcus Santucci (que segundo Hosten dá nome à capela Santus) e o chão está pejado de lápides com inscrições mais ou menos legíveis – uma delas, bastante delapidada, referente ao padre Manuel Monteiro, um dos últimos jesuítas a viajar para missão de Tsaparang, no Tibete Ocidental, em 1641 – que seriam pela primeira vez analisadas, como lembra Hosten, em 1876 por um tal A. Christison, que “traçou uma planta baixa da Capela Mortuária mostrando a posição de 13 lajes e as inscrições em 11 delas”. Todas as inscrições começam com as palavras AQVI IAZO, ou seja, “Aqui jaz”, e no caso de dois clérigos acompanham-nos um “morto pela fe na prisao” e um “morto no Carcere pela fe”.
Por mais longe de Agra que tivessem morrido, os missionários acabariam por ser, sempre que possível, transladados para essa cidade e enterrados na Capela dos Mártires. A lista apresentada por Hosten no seu livro “Jesuit Missionaries in Northern India and Inscriptions on Their Tombs, Agra: 1580-1803”, devidamente actualizada, com os nomes dos religiosos bem escritos e dados adicionais acerca das suas origens e características, iniciativa de trabalho posterior de anónimos investigadores, encontra-se agora exposta numa lápide de mármore colada a uma das paredes interiores da capela, uma iniciativa do Governo das Províncias Unidas do Norte da Índia.
Ei-los: 1. Emannuel d’Anhaya, padre secular, nativo de Santarém, morto em 1633, Agra; 2. Mateus de Paiva, padre jesuíta natural de Lisboa, no Mogor em 1620, morreu a 2 de Novembro de 1633; 3. Emmanuel Garcia, padre secular, nascido em Sripur, leste de Bengala, morto em 23 de Março, 1634, em Agra. (Segue-se uma pequena nota informando que D’Anhaya e Garcia chegaram a Agra em Julho de 1663 vindos de Hugli na companhia de quatro mil cristãos capturados, e em nome da fé morreriam na prisão); 4. Francisco Lanfranki, jesuíta italiano, chegou à Índia em 1632 e morreu a 1 Julho de 1634, Hosten classifica-o de “padre português”; 5. António da Fonseca, jesuíta português, morreu a 7 Agosto de 1634; 6. Francisco Corsi, jesuíta “padre Atash”, florentino na corte mogol em 1599, morreu a 1 de Agosto, 1635; 7. António Machado, jesuíta natural de Serpa, veio para a Índia em 1586, chegou ao Mogor em 1605, morreu a 4 de Abril de 1636; 8. José De Castro, jesuíta nascido em Turim (de origem portuguesa) morreu a 15 de Dezembro de 1646, em Lahore – “o seu corpo, encontrado incorrupto, foi levado para Agra em Fevereiro de 1648”; 9. Anthony Cesques da Santa Cruz, jesuíta nascido em Borgo, Valsucana, Tirol, a 9 Fevereiro de 1618, chegou ao Mogor em 1648, morreu em Agra a 28 Junho de 1656; 10. Francisco d’Sousa, jesuíta natural de Lamego, chegou à Índia em 1647, morreu em Agra a 4 Dezembro de 1657; 11. Albert Dorville, jesuíta belga nascido em Bruxelas em 1622, viajou com o padre Jonhn Grueber de Pequim para Agra via Lhasa e Katmandu em 1661, morreu em Agra a 8 Abril de 1662; 12. Pedro De Mattos, jesuíta português, morreu a 12 Setembro de 1664; 13. Henry Uwens, aliás Busi, jesuíta belga, nasceu em Nijmegen a 23 de Abril 1618, chegou ao Mogor em 1648 – “matemático, amigo do príncipe Dara Shikoh” – morreu em Deli a 6 de Abril, 1667; 14. Henry Roth, jesuíta alemão nascido em Dillegen a 18 de Dezembro de 1620, chegou ao Mogor em 1655 – “especialista em sânscrito” – morreu em Agra a 6 Abril de 1668; 15. José da Costa, jesuíta português, morreu em Deli a 21 Março de 1685; 16. Marco Antonio Santucci, jesuíta “Padre Santus”, nasceu em Lucca, Itália, a 22 de Março de 1638, chegou à Índia em 1668 e a Bengala em 1679, morreu a 1 Agosto de 1689, “o seu túmulo é venerado não apenas por cristãos mas também por muçulmanos e gentios”; 17. António de Magalhães, jesuíta português, “chamado a Cabul por Shah Alam em 1700”, morreu em Deli a 8 de Outubro de 1702; 18. José de Paiva, jesuíta português, morreu em Peshawar a 7 Janeiro de 1706 e foi sepultado em Agra a 19 de Abril de 1706; 19. Emanuel Monteiro, jesuíta português, morreu em Agra a 19 de Abril de 1708; 20. Filipe da Conceição, carmelita descalço português, morreu em Deli a 1 de Outubro de 1710; 21. Francis Borgia Koch, jesuíta alemão – “convidado a ir a Tibete em 1706” – nasceu em Kagensfurt a 9 de Outubro de 1678 e morreu a 8 de Outubro de 1711; 22. António Gabelsperger, jesuíta alemão nascido em Mainburg (Bavaria) a 9 de Outubro de 1718 – “astrónomo de Jai Singh em Jaipur e Jainagar” – morreu a 9 Março 1741; 23. Francisco da Cruz, jesuíta português, morreu em Deli a 22 Maio de 1742; 24. Mateus Rodrigues, jesuíta português, estava em Deli em 1731, morreu em Narwar a 6 Outubro de 1748; 25. André Strobl, jesuíta alemão nascido em Schwandorf (Bavaria) a 23 de Janeiro de 1703, na Índia foi astrónomo de Jai Singh, morreu em Agra a 30 Março de 1752; 26. Francisco Xavier, padre jesuíta, morreu em Junho de 1767, em Fayzabad.
Quanto a Joseph Tieffentaller e a F. X. Wendel, os derradeiros jesuítas na Índia, ambos falecidos de Lucknow, o primeiro em 5 de Julho de 1785 e o segundo a 29 de Março de 1803, jazem enterrados atrás da velha catedral, no cemitério de “Padritola” – uma modesta laje com uma pequena inscrição em Latim assinala os seus túmulos. Hosten lembra que “curiosamente o padre Félix encontrou placas semelhantes em Lucknow”. E em Mathura, a cidade santa de Krishna, “foi encontrado um fragmento com o nome Joseph Tiefentaller”.
Joaquim Magalhães de Castro