O português Antony Firingee no cinema de Bengala
A primeira referência a Antony Firingee na cultura popular bengali transparece no universo literário através do romance “Kabiyal Anthony Firingee”, da escritora Madan Bandyopadhyay. Embora disponível para compra “online” (belíssima capa!), zero informação quanto ao ano de publicação, sinopse ou factos e artefactos da vida e obra da autora. De resto, mostrar-se-iam infrutíferas todas as minhas buscas cibernéticas nesse sentido.
Do papel à tela, vai, quando se tem sorte, a distância de um passo. Teve-a o bardo português de Bengala, pois a sua aventurosa vida mereceu a abordagem cinematográfica do realizador Sunil Banerjee que encarregaria o actor Uttam Kumar de encarnar o protagonista. “Antony Firingee” – assim se designa a película – acabou por ser o maior sucesso de bilheteira da temporada 1967-1968, e constitui um marco primordial na filmografia de Kumar (pelo seu desempenho em “Antony Firingee”, arrecadou o galardão de “melhor actor”) e permanece incontornável referência do cinema de Bengala. Com uma forte componente musical (ainda hoje os bengalis trauteiam as melodias imortalizadas nos quadradinhos de celuloide), este clássico a preto e branco retrata os principais episódios da vida de António e conclui com a trágica morte da sua amada. O filme encontra-se disponível na Internet, infelizmente sem legendas. Tentarei, mesmo assim, deslindá-lo.
Na cena inicial, antes da ficha técnica, e em jeito de intróito, são-nos mostradas a fachada e as paredes laterais da catedral de São Paulo, em Calcutá. Aquele estilo gótico, quase manuelino, evoca vagamente o Mosteiro dos Jerónimos e dá o mote às origens europeias do protagonista, se bem que teria sido mais correcto retratar a bem mais antiga Igreja Portuguesa, consagrada à Nossa Senhora do Rosário, pois a referida catedral é, e sempre foi, de culto anglicano. Mas compreende-se: tem mais impacto visual. Anunciado o realizador, surge António, em grande plano, a apresentar-se como “portugui” e a dar início ao relato da sua vida em Bengala, sendo doravante todo o filme uma imensa evocação do passado. Nos fotogramas seguintes o músico interpreta ao banjo uma cantiga da sua terra natal diante de um grupo de brâmanes inebriados por uma névoa de haxixe. É, de resto, cena assaz curiosa. Certamente por imposição legal, sempre que no filme alguém fuma ou bebe (o que é frequente), surge em rodapé o aviso “fumar tabaco e beber álcool faz mal à saúde”, algo bastante hilariante se associado aos planos que nos mostram brâmanes e sadhus a puxarem fumaça dos xilums como gente grande… O facto da empresa responsável pela divulgação do vídeo se chamar Bong Media – disso nos informa um constante e irritante oráculo amarelo torrado a saltitar de um lado para o outro do ecrã ao longo de duas horas e tal – torna tudo aquilo mais irónico. O bong, para quem não sabe, é um cachimbo de água, a versão tailandesa do xilum indiano.
Quanto ao aparente anacronismo de vermos ali um banjo, convém lembrar a origem portuguesa do instrumento, adaptado de um mais primitivo utilizado nas Caraíbas desde o século XVII pelos escravos originários da África Ocidental. Só apareceria na América do Norte um século depois, tornando-se cada vez mais comum por volta do segundo quartel do século XIX, ao ponto de agora o associarmos quase exclusivamente aos universos do oeste americano e do jazz. Quanto à etimologia do nome, provável origem no termo kimbundu “mbanza” (instrumento de cordas africano) ou numa dança tradicional afro-caribenha chamada “banya”. Alías, numa das músicas (da autoria de Antony Firingee, também compositor) o banjo é instrumento predominante e a melodia remete-nos para o Norte de Portugal. Nada de novo, pois muita da música que se escuta na Índia de hoje vai buscar as suas raízes à nossa.
Revela-nos depois, este clássico do cinema bengali, o espaço familiar onde se movimenta António: arquitectura e mobília de estilo europeu; diversa imagética católica, etc. Entra em cena Marina, a jovem portuguesa que em vão tenta amolecer o coração do bardo. Num sarau com convivas portugueses, que ouvem atentamente uma pianista, é visível o desconforto de António, apesar das tentativas para o animar da pretendente a noiva.
Ao contrário do irmão, Kelly, António não se envergonha das suas raízes nativas, pois o argumento deste filme, contrariando os factos biográficos, apresenta a mãe, adoentada, como sendo natural de Bengala. O que, no contexto, é até mais plausível do que o estatuto de reinol que a biografia lhe atribui. Embora pareça estranho, os prenomes anglo-saxónicos enquadram-se perfeitamente neste período colonial britânico. Muitos portugueses e luso-descendentes alteraram nomes e apelidos para melhor sobreviverem numa sociedade profundamente classista. O mesmo acontecerá, séculos depois, nos Estados Unidos e noutras partes do mundo. Após a morte da mãe, Kelly parte para Portugal e António fica encarregado de zelar pelos negócios do pai, abastado proprietário. Mas António não está para aí virado, como parecem demonstrar algumas das cenas em que interage com aquele que parece ser o caseiro ou o feitor da empresa familiar.
Para o distrair, um grupo de amigos convencem-no a acompanhá-los a casa de um brâmane influente onde actuará Shakilabai, cantora recém chegada de Murshidabad, interpretada pela consagrada actriz Tanuja, vedeta de Bollywood. António ouve-a cantar e fica extasiado; rendido à sua beleza e capacidade musical. Doravante, todos os pretextos serão bons para visitar aquela casa, redobrando de intensidade, dia-após-dia, a sua paixão pela misteriosa dama. E tanta é a paixão que o ambiente familiar se torna insuportável. Noutra encenação de um convívio europeu – com valsas, vinho, risadas e aplausos – temos António, resguardado num quarto contíguo, afogando as mágoas em sucessivos copos de tinto. Após vários encontros e outras tantas toadas, interpretados por um e por outro, Shakilabai acaba por falar da sua vida – mais uma evocação do passado. Afinal, chamava-se Nirupama (a Soudamini da vida real) e fora casada com um idoso. Ao ficar viúva fugira para escapar à pira funerária e o seu pretenso salvador, um tal de Ratikanta, acabaria por vendê-la ao dono de um bordel. Desde então, feita cortesã, ia de casa em casa de gente rica. Neste particular, peca o guião por negar a essência desta história real, pois omite a salvação de Nirapuma (ou melhor, Soudamini) pelo português. Aliás, pelo que me apercebo, António é apresentado quase como um renegado; alguém que nega parte das suas raízes para se entregar de corpo e alma à cultura hindu. Duas cenas demonstrativas: a forma como reage com o pároco, que o lembra da sua condição de católico, e o desprezo total para com a sua antiga namorada Marina. António só tem olhos para Nirupama, e nisso é correspondido em absoluto. Ambos são considerados forasteiros pelos respectivos circuitos sociais, que os ostracizam abertamente. Decidem os nossos heróis casar-se e passam a viver numa humilde habitação.
Para agravar a união proibida, António pretende tornar-se “kobiyal” e envolver-se em duelos musicais. Sedento de aprender as técnicas dessa arte, aborda os entendidos. Estes, intrigados, desencorajam-no dizendo-lhe que um estrangeiro jamais as poderá dominar. O desânimo inicial de António é compensado pelo apoio incondicional de Nirupama. Estuda diligentemente os textos religiosos, forma um grupo e começa a participar em concursos. Em breve tê-lo-emos em pé de igualdade, e em competição, com aqueles que outrora recusaram transmitir-lhe os seus conhecimentos. Embora os concursos de canto se centrem em textos religiosos, há margem de sobra para os ataques pessoais. E António, com os seus antecedentes, mostra ser alvo fácil para as farpas cruéis dos adversários. Numa das cenas mais famosas, um dos “kobiyals” zomba da forma como está vestido, afirmando que por mais que ele tente ser hindu “nunca poderá esconder a sua verdadeira identidade”. António retruca: “Não há diferença entre Cristo e Krishna, querido irmão. Nunca ouvi falar de homens correndo atrás de meros nomes. Aquele que é meu Deus, é o mesmo Hari dos hindus”.
Outro confronto notável ocorre no início do filme. Depois da deslumbrante actuação de uma cantora (a vocalista clássica Malabika Kanan faz as honras da reprodução), o seu mentor, afamado músico de Lucknow, aplaude e elogia-a fartamente. António levanta-se e, sem papas na língua, afirma que embora o canto dela tivesse “taiyyari” (técnica), faltava-lhe “dil” (coração). O público desafia-o então a subir ao palco e a provar seu ponto de vista. António aceita o repto. Segue-se uma das grandes canções do cinema de Bengala, “Aami Je Jalsaghare”, da autoria de Manna Dey, a voz favorita da indústria cinematográfica na Índia. No caso do “Antony Feringhee” partilha créditos com outra voz de eleição, Sandhya Mukherjee, sempre com as letras de Gauriprasanna Majumdar. Infelizmente, o compositor da banda sonora do filme, Anil Bagchi, parece ter caído no esquecimento.
Joaquim Magalhães de Castro