MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 21

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 21

O regresso a Dianga e o pirata Damião Bernaldes

Se é verdade estarmos perante um Sebastião Gonçalves Tibau aventureiro, sem escrúpulos nem remorsos, tal ferrete não faz dele pirata necessariamente. Embora acometesse com temerosas incursões ao longo da costa do Arracão, elas seriam de carácter retaliador (pela afronta sofrida em Dianga, como já vimos). Na verdade, não há provas de que ao longo dos nove anos de fulgurante ascensão militar e territorial, de 1607 a 1616, tenha Tibau exercido explícita pirataria. Admirável, isso sim, a estamina e a resiliência deste alevantado, face ao poderio arracanês, mogol e das potestades hindus; não obstante mereceria o ribatejano as mais reprovadoras palavras de Faria e Sousa. Critica-o arduamente o cronista, “o seu reinado passou como uma sombra”, diz-nos ele, e espantam-se os anglo-saxónicos, aqui representados por William H. Beveridge, barão de Beveridge, com o nosso proverbial excesso de zelo. Chocam este economista e político liberal inglês, nascido em Bengala em 1879, os reparos nada simpáticos do historiador português. Para Beveridge, Tibau, “homem de grande vigor e capacidade”, sobraçou porque o oficial enviado de Goa para o socorrer, “por orgulho ou precipitação”, se recusou a continuar a prestar-lhe o necessário apoio. E nesse particular tivera culpas no cartório o vice-rei, “que dera instruções ao capitão Luís de Azevedo para que não esperasse Tibau”, concluindo categoricamente: “se Sebastião Gonçalves fosse inglês e o historiador em causa um compatriota seu, certamente ouviríamos dele não críticas mas sim louvores à energia anglo-saxónica e ao espírito dos vikings” – o tal da luta até ao último fôlego.

Na verdade, se D. Luís de Azevedo tivesse cooperado com Tibau, diferente teria sido o destino da ilha de Sundiva e dos portugueses que nela se acoitavam. Evitar-se-ia assim a esperada dispersão de todos eles pelos reinos de Bengala e Arracão, êxodo responsável pelo despontar de bolsas piráticas cuja má-fama ainda hoje sobrevive em tais paragens. Após a queda de Tibau e até ao ano de 1665 o nome de Portugal e dos seus filhos foram sinónimos de infâmia e crueldade. Os caudalosos rios e as suas vastas margens eram os novos lares desses homens habituados a não obedecer a qualquer tipo de poder instituído e a servir quem lhes garantisse melhor soldo. Para sobreviver, recorreram à pirataria e à pilhagem indiscriminadas. Fizeram-no, primeiro, por necessidade, transformando depois o ilícito numa actividade comercial com forte carga bélica. Mas atenção, não foram eles os inventores locais de tão reprováveis métodos, tão-só introdutores do elemento marítimo nas costumeiras ofensivas levadas a cabo pelos senhorios de Arracão, Tipura e dos khans mogóis, uns e outros temíveis saqueadores.

Efabuladas lendas imortalizam o nome de Dilal Khan, pirata e bandido protagonista da oralidade actual em Sundiva e redondezas. Consta que, tal como o Zé do Telhado, providenciava os pobres com os excedentes subtraídos aos mais abastados. Acabaria às mãos de Husain Bey, general de Shaista Khan, que o confinou a uma enxovia de Daca onde passaria o resto dos seus dias. Temos ainda a história do aventureiro inglês J. Shepard, particularmente activo na região dos Sundarbans, e que acabaria preso e deportado. Em 1638 tiveram os mogóis uma oportunidade de ouro de se apoderar da parte restante de Bengala, e isto porque Matak Rai, governador de Chatigão, se rebelara contra o rei de Arracão, obrigando este a solicitar os préstimos dos portugueses. Pagou-lhes chorudos salários e convidou-os a voltar a instalarem-se em Dianga. Com a sua ajuda construíram os arracaneses navios com suficiente dimensão para acomodar peças de artilharia, e assim equipados devastaram território mogol, estendendo os seus ataques às imediações de Daca. A iniciativa conjunta prolongar-se-ia até 1665, altura em que Shaista Khan conquista Chatigão e definitivamente quebrou o poder dos rebeldes.

A reputação dos portugueses enquanto piratas e aventureiros manter-se-ia em Bengala até aos dias de hoje, povoando múltiplos universos da herança oral local. Ora, esta permanente associação à pirataria é bastante injusta, já que se limitaram ao leste de Bengala as acções desses aventureiros e mercenários, no fundo, foragidos de Goa e demais entrepostos lusos, proscritos não reconhecidos pelos próprios compatriotas. O capitão Rui Vaz Pereira ao ver em Chatigão um navio mouro “construído ao modo português” pronto a dedicar-se ao corso, apreendeu-o para que as suas práticas “não manchassem a boa reputação dos portugueses”. Os mercadores do oeste de Bengala, de Hugli, por exemplo, demarcavam-se claramente da actividade, apesar de ter havido, como já se viu, na foz do rio Hooghly, a doze milhas da ilha de Saugor, entre os sobreviventes do cerco ao mencionado entreposto, quem optasse por exercer a pirataria. Em 1531 deu o vice-rei Nuno da Cunha a Damião Bernaldes uma licença da viagem a Bengala. Este, porém, pouco depois de dobrar o Cabo de Camorim, decidiu virar corsário e nas ilhas de Nicobar capturou um navio mouro com valiosa carga. Ao inteirar-se de tal, Nuno da Cunha não hesitou: rogou a Khajeh Shihab-ud-din, governador de Chatigão e amigo dos portugueses, que prendesse Bernaldes assim que este aportasse a Chatigão, ou até, fosse esse o seu desejo, o executasse, a ele e a toda a guarnição. Ancoravam então dezassete navios portugueses ao largo de Chatigão e logo se dispuseram a assegurar que dali Bernaldes não partiria. Mas nada lhe fizeram quando ali chegou, na esperança que o proscrito pedisse perdão e se redimisse, abandonando de pronto a ilícita actividade. Damião gorou todas as expectativas ao raptar um mercador influente e, confrontado com a captura de alguns dos seus homens entretanto saídos em terra, recusou resgatá-lo em troca dos companheiros, antes pediu elevado montante pelo valioso prisioneiro. Custou-lhe a ousadia as mais diversas tentativas de captura, sendo uma delas, no porto de Negatapão, costa do Coromandel, bem sucedida. Dali seguiu o nosso Bernaldes, em ferros, para Goa, e dessa cidade para o desterro que o veria fenecer. Assim eram punidos os piratas e os renegados.

Ao assenhorarem-se da baía e dos rios de Bengala, fizeram questão os portugueses que nenhum navio navegasse sem a devida autorização – o famoso cartaz –, concedida livremente como garante de segurança marítima, o que não acontecia quando alguma dessas embarcações caía nas garras dos aventureiros pululantes nas bocas do Ganges. Khafi Khan, historiador muçulmano, credita os portugueses e queixa-se dos ingleses. Ao referir-se aos primeiros, diz: “no mar, eles [portugueses] não são como os ingleses; não atacam outros navios, excepto os que não tragam cartazes, como é regra, ou os navios da Arábia ou de Mascate, com os quais têm inimizades de longa data; a este atacam-nos sempre que têm oportunidade. Se um navio destrambelhado cai em suas mãos, consideram-no de imediato presa sua”. Os portugueses de Hugli, prometeram a Akbar, e mais tarde a Jahangir, manter livre da pirataria toda aquela zona, embora não tenham conseguido cumprir na totalidade a promessa. Quanto aos aventureiros do golfo de Bengala não faltavam crimes que se lhe apontassem; e a determinada altura até um padre, um tal frei Vicente, integrava a lista dos mandantes. Porém, apesar dos desmandos, longe estavam da ferocidade manifestada pelos congéneres arracaneses. Eis o retrato que de uns e outros, misturando-os indiscriminadamente, traça o viajante François Bernier: “Sempre houve, ao longo dos tempos, no reino de Arracão, muitos portugueses invariavelmente acompanhados por mestiços e escravos cristãos, e ainda outros faranguis”. Arracão era o refúgio predilecto de fugitivos oriundos de Goa, Ceilão, Cochim, Malaca e “de outros lugares ocupados pelos portugueses”. Ali eram bem-vindos e tidos em consideração e ninguém lhes apontava o dedo. Acontecia até “massacrarem-se e envenenarem-se mutuamente com total impunidade”, e nem os padres escapavam, pois em vez de dar o exemplo “levavam vidas indignas de cristãos”.

Joaquim Magalhães de Castro

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