Memória Portuguesa no Nordeste da Índia e no Bangladesh – 2

A aculturação como forma de sobrevivência

Se no que se refere aos firingis de Rangamati, Hossumpur, Chiroto e Bondashil podemos considerar que há um fio condutor comum, no do estabelecimento católico de Mariamnagar, em Tripura, a situação é bem diversa. Aqui, temos uma vantagem: a história desta aldeia encontra-se muito bem documentada e remonta à época em que o Amar Manikya, rei dos tripuris, povo de origem tibetana-birmanesa, entre 1577 e 1586, recorreu pela primeira vez aos serviços dos mercenários portugueses originários de Chittagong e de Noakhali (região a sul de Daca, no delta gangético), plenamente integrados no seu exército, para expulsar os mogóis do Arracão e das colinas de Chittagong adjacentes ao seu reino, quando a capital era Udaipur. Curiosamente, esses mercenários tinham estado anteriormente ao serviço dos mogóis… Com a transferência da capital mais para norte, mais exactamente para Agartala, corria o ano de 1760 – numa altura em que eram já os britânicos os novos senhores de Tripura e o rei não passava de um zamindar (senhorio), embora obrigado a pagar renda à Companhia das Índias Orientais –, os aguerridos firingis, já então bastante reduzidos em termos numéricos, desempenhariam funções de artilheiros no exército, ou então de agricultores em terras que lhes tinham sido ofertadas. À aldeia onde doravante passariam a viver designaram-na de Mariamnagar, em honra da Virgem Maria. Havia ainda um outro assentamento, nas proximidades, designado Kashipur.

O primeiro padre católico a assisti-los seria o jesuíta Inácio Gomes, que ali chegou em 1683. No relato da sua jornada descreve essa gente como “cristãos não muito bons”, ou seja, “pouco mais do que hindus baptizados”. 160 anos mais tarde, em 1843, seria a vez de o padre P. Barber, sacerdote francês, pastor de Chittagong, descobrir esta colónia cristã. Nenhum dos aldeões tinha visto um padre em toda a sua vida; não obstante, “de alguma forma, continuavam a manter a fé e a baptizar os seus filhos”. Barber deparou com uma comunidade “muito feliz, e posso assegurar que a comida deles é melhor, a sua roupa mais limpa e as suas casas mais confortáveis, do que a daqueles que vivem sob a bandeira britânica”. No decorrer da sua estada, o padre francês baptizou quatro neófitos e “rebaptizou” as 78 pessoas que alegavam já o terem feito por iniciativa própria. Abençoou ainda o casamento de quatro casais e regularizou a situação marital de outros catorze.

Apesar das muitas contrariedades a que foram sujeitas, as comunidades de Bondashil e de Mariamnagar não desapareceram. No primeiro caso, a acentuada erosão da margem sul do rio Barak durante o século passado levou grande parte da vila. Isolados, não foi nada fácil manter a religião e os costumes que os distinguiam das restantes comunidades. Seriam muitas e adversas as situações que os estoicos firingis tiveram de suportar. Porém, com o tempo aprenderiam a adoptar as práticas das comunidades em seu redor, conseguindo dessa forma ir sobrevivendo. “A religião e as imposições sociais”, argumenta o professor David R. Syiemlieh, “limitavam os seus ‘contratos casamenteiros’ às regiões de Baniachong, Mariamnagar, Bondashil e a Noakhali, enfraquecendo-os em termos genéticos. Também a destilação do arroz e o consumo dos seus derivados alcoólicos contribuíram para uma maior ruína física e anímica”. Além disso, “o cultivo de produtos agrícolas tornar-se-ia numa actividade secundária e assim, com a passagem dos anos, a maior parte dos terrenos que pertenciam aos firingis foram sendo vendidos a forasteiros”, com meros interesses especulativos. Também a construção da via-férrea Bengala-Assam, nos primeiros anos do século XX, com uma junção em Badarpur, ofereceria a muitos dos homens dessas comunidades uma ocupação mais útil e lucrativa; muito tentadora, portanto. “É bem possível que a melhoria da situação económica e a abertura de uma missão católica em 1911 (a cargo de um padre do norte da Europa, com cultura e modo de ser diversos do dos portugueses) tenha contribuído para um maior isolamento daquela gente, de resto visível na indumentária escolhida e o crescente uso do Inglês em casa e do Bengali no contacto com os vizinhos”, conclui David R. Syiemlieh. Esse “oásis cristão” – como lhe chamou o monsenhor Christopher Becker – seria ministrado por sacerdotes salvatorianos alemães, de 1891 até 1915. Apesar disso, hoje muitos dos prelados locais em actividade ostentam apelidos portugueses, como é o caso do padre Albano D’Mello, administrador diocesano das colinas do norte do distrito de Cachar (diocese de Diphu, no Assam). No ano de 1952, a 7 de Janeiro, a cidade de Haflong seria elevada à categoria de prefeitura apostólica e a administrá-la ficaria o monsenhor Gomes Breens. A sua área de jurisdição incluía as colinas de Cachar e de Mizo, e ainda Tripura. Esta mesma prefeitura seria elevada a diocese a 26 de Junho de 1968, estando a Sé Episcopal sedeada em Silchar e a ministrá-la o bispo Denzil D’Souza. Também o nome do actual bispo de Agartala, Lumen Monteiro, da Congregação da Santa Cruz, em funções desde 1996, denota origem lusitana.

À medida que diminuía o poder do rajá de Tripura, minguava também a possibilidade de sobrevivência dos cristãos de Mariamnagar, embora estes continuassem a ter posições de destaque no exército e lhes fosse autorizada a posse de armas; isto, até o seu lugar ser ocupado por soldados da região, sobretudo manipuris e gurkhas. Em meados do século XX tinham já todos perdido o patrocínio do Estado e, por conseguinte, o respectivo emprego. Consta que em 1947 haveria apenas um firingi no serviço militar. Durante um périplo pela região, Sambhu C. Mukherjee, distinto “dewan” (ministro) de Manipur, tentou apurar pormenores acerca do fornecimento de bebidas alcoólicas produzidas localmente. Feita a devida inquirição, o notável senhor ficaria a saber que os tripuris produziam-nas, “de boa qualidade”, em casa, e através da fermentação de arroz cozido, muito embora a melhor bebida de todas, “e de longe”, era aquela feita pelos firingis. Mukherjee confessa que, entre os destiladores que conheceu nessa sua viagem, apenas com um “certo Joakim” valia a pena conversar. Nessa altura, soube também que a comunidade estava prestes a partir de Agartala para se instalar definitivamente em Noakhali. Os seus rendimentos eram escassíssimos e o número de pessoas tinha sido drasticamente reduzido devidos às bastas mortes causadas pelas doenças. Em suma: daquela outrora florescente e próspera comunidade cristã restavam apenas algumas famílias com imensas dificuldades financeiras. Ciente do seu inestimável valor, o dewan Mukherjee confessou-lhes pessoalmente o apreço e aconselhou-os a ali permanecer, assegurando-lhes que lhes iria tornar a vida mais confortável. Reconfortada, a comunidade aceitou o repto e em Mariamnagar e Kashipur permaneceria. Até hoje.

Ao contrário dos seus contrapartes de Bondashil, os firingis de Mariamnagar estavam já muito profundamente integrados na sociedade de Bengala. Falavam Bengali, cantavam canções bengalis, usavam instrumentos musicais da comunidade dominante, vestiam-se como eles e tinham até adquirido os seus hábitos alimentares, embora não ocultassem a sua preferência pela carne de porco em ocasiões muito especiais. Se atentarmos à descrição de um casamento firingi em Setembro 1891 não o diferenciaremos de uma qualquer outra similar cerimónia bengali. Os firingis, no entanto, não foram completamente integrados. Mantiveram a sua religião e uma forte consciência histórica das suas origens. Apesar de abandonados à sua sorte, recitavam ainda um Ave-Maria com uma mistura de Bengali e de Português, “mas que não deixava de ser um Ave-Maria”.

Várias famílias de origem portuguesa – Lagardo, Marcher, Mendez, Rodrigues, Mendoza, Anthony, Quiah e Fernandez – de Bondashil (agora parte da Badarpur) e de Mariamnagar estão rapidamente a perder as suas raízes devido à migração dos seus membros para outras paragens da Índia em busca de emprego, assim como devido aos casamento efectuados fora da comunidade. As poucas famílias restantes lutam para manter o seu passado, cientes de que poderão ser os últimos representantes de uma comunidade orgulhosa cuja ascendência remonta há muitos séculos.

Joaquim Magalhães de Castro

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