Em terra de menancabos
Na manhã seguinte, enquanto aguardava transporte para Subulsalam, dei por mim a tentar perceber a razão pela qual detesto terminais de autocarros, estações centrais de comboios e aeroportos. São ruidosos, a comida não presta e é cara, e, o pior: é aí que nos despedimos dos amigos e dos entes mais queridos sem saber se os vamos rever ou não. É aí que, apesar de rodeados de gente, nos sentimos mais sós.
Desta vez o mini-bus encheu por completo, tanto o interior quanto o tejadilho, deixando-me literalmente encaixado naquela mole humana, incapaz de me mover. Éramos treze passageiros, de início, mas a conta foi aumentando após a recolha de uns quantos familiares do motorista, que tiveram direito a serviço ao domicílio e lugares na frente. O ajudante seguia na parte de trás, com a ponta de um dos pés no pára-choques, uma das mãos na porta aberta e o resto do corpo suspenso no ar. Tal era o peso que, sempre que surgia um desnível ou um buraco na estrada, o condutor abrandava quase ao ponto de parar. Nas subidas mais acentuadas não tínhamos outra alternativa, senão sairmos, um a um, e acompanharmos a viatura até que a topografia permitisse que voltasse a ganhar fôlego.
Era os proprietários desses mini-autocarros que as televisões deveriam consultar sempre que quisessem pôr no ar um desses concursos imbecis cujo objectivo é acamar o maior número possível de pessoas dentro de um pequeno veículo.
A primeira hora foi de puro sofrimento, atenuado por uma paisagem inesquecível. Sobe e desce, avista e não avista, o mar. Um mar tão perto e tão inacessível.
Já não se via tantos apelos ao referendo e o grafiti era agora também integracionista: “Indonesia Satu” (Uma Indonésia).
Lembro-me de avistar um grupo de indivíduos de camuflado que não pareciam pertencer ao exército. Seriam rebeldes dos GAM ou milícias de uma qualquer organização paramilitar?
Seguir-se-iam várias aldeias de pescadores. Kandang, Bakangan, Truman. Nesta última, repleta de bandeiras indonésias alinhadas longo da estrada, parámos para almoçar. A que se devia tão súbito acesso de patriotismo?
Nas localidades seguintes esse nacionalismo era ainda mais evidente: uma bandeira, ou mais, em cada casa. Milhares de bandeiras indonésias.
Enveredámos uma vez mais para o interior. Palmeirais, palmeirais, palmeirais… e bananeiras. Nunca mais chegávamos a Subulsalam!
Comecei a contabilizar os quilómetros quando vi a borrasca anunciada num céu carregado. E ela depressa chegaria; porém, encetara já nova viagem, desta feita usufruindo de um assento só para mim – um verdadeiro luxo! Minutos antes, num outro terminal rodoviário, aguentara uma hora de espera a ouvir as perguntas e as respostas do costume. “America no good!”. Bom era o Bin Laden, que lá estava estampado na t-shirt de um dos curiosos que me abordaram. É claro que o futebol também veio à baila. Só podia.
Antes mesmo dos limítrofes da província do Achém tinham-se sumido, como que por magia, os postos militares. A polícia passara a trajar de azul e branco, e os tectos de colmo de algumas das casas eram claros indícios de que doravante as coisas iriam mudar radicalmente.
Faziam-nos agora companhia florestas em vez de colinas, igrejas em vez de mesquitas. Com esse panorama progredimos em direcção a Sidikalang, já em pleno território dos bataques, antigos canibais, hoje protestantes exemplares.
Depois de uns dias a descansar junto ao lago Toba era meu objectivo visitar a região do antigo reino dos menancabos, ou melhor dizendo, em Bahasa Indonésio, os minangkabaus.
Os arredores de Bukkitingi, capital cultural dessa etnia, a 930 metros de altitude, mereceram-me curtas, mas atentas visitas. Primeira paragem em Tabek Patah, para apreciar as plantações de arroz, canela, café (a folha de café é utilizada como elixir para mil maleitas), pimenta (claro!), cana-de-açúcar, anis, coriandro e maça. Em Sungai Tarab visitei uma usina artesanal, junto a um moinho de água em tudo igual aos nossos, onde se produzia uma guloseima local chamada krassa, no fundo, uma fritada de nabo doce, envolvida em melaço líquido. A fábrica funcionava em sistema cooperativo e a sua mão-de-obra era composta por dezenas de mulheres, apenas mulheres, que esfiapavam, fritavam, metiam e tiravam das formas, e, por fim, empacotavam os referidos nabos doces.
No mercado de Bukkitingi, além da krassa, havia outra doçaria regional, como os bolos (na verdade, queques), os risoles (rissóis) ou as empadas de keju (queijo) à venda numa confeitaria mesmo ao lado de uma banca de jornais, onde sobressaía a edição do dia do Bola, matutino desportivo de maior circulação na Indonésia. O Bola deles era habitualmente preenchido com as tricas do calcio, daí que não me tenha surpreendido ver a figura de Rui Costa estampada nos cartazes de maior destaque.
Em Batu Sangkar – centro da cultura tradicional do Minangkabau – as lutas de touros, que decorriam em dias de mercado, eram de visita obrigatória. A esse respeito houve quem me garantisse que as taurinas brigas, no decorrer dos quais os espectadores faziam apostas de muitos milhares de rupias, tinham sido «introduzidas na ilha por portugueses de Macau».
Se, nas zonas costeiras de Samatra, a nossa influência se mostrava abertamente nos rostos das gentes e no ferro dos canhões, no interior essa evidência praticamente passava despercebida. Havia que visitar os museus e ficar atento ao que ali estava exposto.
Joaquim Magalhães de Castro