Kupang, a antiga Cupão

A capital do outro Timor.

Doze horas no convés de um barco a ver a linha do horizonte depois de uma chuvada é uma excelente ocasião para ler e repor as horas de sono em falta. Só avisto terra, o perfil da ilha de Rote, quando a luz do dia se vai desvanecendo num céu alaranjado.

Chego a Kupang, capital de Timor Oriental, já de noite e de novo começa, no cais, o inferno dos encontrões, dos apertos e das bemos a solicitarem a presença do recém-chegado. Sou obrigado a dar uns berros para abrir caminho até à única carrinha que não faz qualquer proposta.

Já lá está um casal de timorenses acabados de chegar de Bali. Afinal o Awu faz escala em Benoa, o porto dessa afamada ilha. «O preço do bilhete é de 300 mil rupias, quase tanto como um bilhete de avião», diz o timorense que já não falava Português desde 1975. Entusiasmado, pergunto: «Têm família em Díli? E quando é que voltam?». Como resposta, obtenho silêncios. Comprometedores. Quase envergonhados. Evito, por isso, um assunto que na banda oeste de Timor é sempre sensível.

Separam-nos do centro da cidade dezena e meia de quilómetros através de uma espécie de reserva natural habitada por macacos, que pelos vistos são uma das atracções turísticas de Kupang.

O mítico hotel L’Avalon já não existe. Ou melhor, é agora um café junto ao mar, posto de informações onde gatos se entendem com cães às mil maravilhas ao som da escolha musical do Eddy, o proprietário.

«A crise do turismo obrigou ao encerramento de todos os hotéis de baixo preço», desabafa este apreciador do género “chill out”. «Para as autoridades locais, todos os estrangeiros são agentes secretos em potência. Estão completamente loucos».

Pelos vistos não são só as autoridades locais a pensar deste modo, como teria oportunidade de comprovar mais tarde.

O Laguna Inn está cheio. Cheios estão outros três hotéis. Acabo, depois de percorrer vários quilómetros de subidas e descidas onde foi construída a cidade, na rua do hospital, no hotel Faridha que o timorense me tinha aconselhado.

Primeiro dizem-me que há lugar. Imediatamente após ter feito o registo, dão-me a entender que o quarto está já reservado, o que me obriga a ser determinado e recusar-me a sair dali enquanto não me atribuírem um quarto. Aparece então a dona do hotel, uma mulher idosa com a boca tingida pelo bétel, que me pergunta com ar desconfiado: «Mas amanhã vai-se embora, não é?».

Muitas vezes os habitantes locais questionam-se se fulano ou sicrano é um espião… Ressoam-me ainda nos ouvidos as palavras do esclarecido Eddy. Para cúmulo, vejo-me obrigado a dormir de luz acesa porque este hotel tem os circuitos de tal forma montados que, quando se desliga o interruptor da luz, desliga-se também a ventoinha do tecto. E sem ventoinha a funcionar, por mais ténue que seja o seu movimento, é impossível adormecer.

Kupang – a Cupão das crónicas portuguesas – é hoje o único centro urbano das Sundas Meridionais. Ao fundo do arquipélago indonésio e na parte ocidental de Timor, esta cidade foi portuguesa, numa época em que o controlo administrativo se cingia às zonas costeiras.

As primeiras expedições comerciais dos portugueses à Insulíndia Oriental datam de 1512 e dirigem-se às Malucas. É pouco provável que tenham passado por Timor onde havia sândalo em abundância. A chegada dos portugueses a esta ilha terá ocorrido por volta de 1514. Timor dividia-se então em diversos reinos dominados por dois poderosos chefes tradicionais, os liurais.

A partir da vizinha ilha de Solor, António Taveira, em 1556, inicia o processo de missionação nas ilhas Flores, Savu, Adonara e Timor. Graças ao papel dos dominicanos, diversos régulos convertidos ao Cristianismo ficaram sob a alçada do poder português.

A dita “igreja dos Portugueses” de Kupang mais faz lembrar uma igreja mexicana, daquelas que vemos nos “spaghetti western”. Os factos históricos, contudo, comprovam uma existência mais antiga. Hoje o sinal mais português que apresenta é um nome imortalizado numa lápide: “in memorium Mgr. Gregorius Manteiro, SVD”. Manteiro, (Monteiro), bispo de Larantuca.

Rodeia o templo um interessante amontoado de pedras e de coral onde cresceram árvores. Percorro ruas em busca de pistas e tudo o que encontro são graffiti. Mais graffiti com apelidos portugueses: Bento. Sarmento. Costa. Nomes que perduram no imaginário colectivo, quiçá com alguma carga simbólica. No meio destes, escrito a vermelho em parede branca, uma vez mais o nome Figo.

Em 1646 os portugueses edificaram em Kupang uma fortaleza que seria conquistada pelos holandeses em 1652. Face a este cenário, o poder transfere-se definitivamente das Flores para Lifau, no enclave de Oecussi, que será a primeira capital de Timor-Leste.

A divisão da ilha entre Portugal e a Holanda é feita pelo tratado de 1859 que atribui ao primeiro os reinos dos Belos, cabendo à segunda os de Servião.

O forte Concordia é actualmente um aquartelamento militar com dois canhões à entrada pintados a preto e vermelho. O benteng – na perspectiva dos jovens militares que aí habitam com as famílias – reduz-se a uma lápide funerária com uma frase em Holandês. Da estrutura da fortaleza, só mesmo os restos da muralha visíveis do paredão em frente ao bar de Eddy, onde de manhã anda pessoal uniformizado a enterrar o lixo queimado na areia porque à noite o local vai receber uma distinta convidada: a “mayor” de Darwin, cidade gémea da capital da província de Nusa Tenggara. Ultimam-se pormenores junto ao retrato do governador da província – um militar vestido a preceito – e o da autarca australiana, em cuja cabeça, com a ajuda do photoshop, foi enfiado um chapéu tradicional da ilha de Rote. As bandeiras e o aprumo visíveis por aqui contrastam em absoluto com o estado de degradação em que o centro da cidade se encontra.

Um canhão de comprovada origem portuguesa (será o que veio de Maumere?) encontra-se numa outra instalação militar. Faz parelha com réplicas de um míssil e de uma granada feitas em cimento, orgulho do regimento de infantaria ali destacado.

Tomada de assalto pelas ruidosas bemos que circulam à razão de uma por segundo, Kupang tem um ar abandalhado. Pouco resta da cidade antiga. Os edifícios, em péssimo estado, são em tudo iguais aos de congéneres, como Macau, Malaca e Pukhet. Os mesmos azulejos verdes. Os mesmos telhados. Os mesmos arcos. As mesmas portas. As mesmas persianas de madeira. As mesmas paredes esventradas a revelar tijolos ou pedaços de ripas. A mesma roupa a secar. Tudo à espera de mais uns anos ou de um bupati menos corrupto e mais empreendedor, sempre novo-rico de mentalidade, para que tudo se desvaneça.

Vendedores de tabaco e de bétel abrigam-se numa das vielas mais características, não muito longe do edifício cor-de-laranja do terminal. Parte da zona ribeirinha foi construída em cima das rochas de coral.

No canal, barcos poisados no areão e no lixo acumulado aguardam a maré para se fazerem ao mar. Na margem oposta ergue-se um templo taoista que está à guarda de um simpático e nada comum casal. Ele, orang asli de Kupang. Ela, chinesa. Gordinha e sorridente. Os frutos dessa união são perfeitos: encantadoras crianças como que a comprovar que quanto mais se misturam as raças mais belas criaturas se geram.

Ao cair da tarde, na praça ribeirinha, jovens inventam acrobacias e varrem o chão vestindo calças à boca-de-sino, enquanto os vendedores puxam carretas de madeira cheias de laranjas. Da praia, imagina-se a fortaleza que praticamente já não existe e olham-se os pescadores que escolhem o peixe que vale a pena pôr a secar sobre placas de zinco e os que limpam o lodo das embarcações com a ajuda da areia. Por detrás deles, as casas, encavalitadas nos rochedos de coral, mais parecem embarcações, essas, outras, viradas ao mar alto.

Joaquim Magalhães de Castro

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