Francisco compreendeu o essencial da vida que é Deus
É uma das maiores especialistas na vida dos pastorinhos de Fátima, e ninguém esquece o sorriso rasgado com que participou na cerimónia de canonização das crianças Francisco e Jacinta. Quando passam cem anos sobre a morte de Francisco, a Irmã Ângela Coelho leva-nos a conhecer melhor este menino que já era “director espiritual” de Lúcia e Jacinta.
FAMÍLIA CRISTÖ É o centenário da morte de Francisco… Como é que tudo aconteceu?
IRMÃ ÂNGELA COELHO– No final de 1918, Francisco e a sua irmã Jacinta ficaram doentes, por altura do Outono, da gripe espanhola, uma epidemia que apareceu no pós-Primeira Guerra Mundial e assolou a Europa e uma grande parte do mundo. Ficaram eles os dois, mais muita gente em Fátima; eles não foram os únicos. A única diferença é que eles tinham a consciência de que isso ia acontecer. Não que iriam ficar com gripe, mas que iriam morrer, porque Nossa Senhora lhes tinha dito na aparição de Junho. E é a partir dessa aparição que eles começam de facto a exprimir este conhecimento de que iam para o Céu e que estavam muito contentes por isso, porque iam ter com Nossa Senhora e Nosso Senhor. Entretanto, o Francisco fica logo ali doente e vai acamar, e é o primeiro a ficar fragilizado e depois morre no dia 4 de Abril de 1919. À noite, ao cair do dia, na sua casa em Fátima. É o único que morre em Fátima.
FC– Morre em paz?
I.A.C.– Morre em paz. Ele teve dois grandes desejos antes de morrer: comungar para tomar «Jesus escondido», e para isso precisava de se confessar, porque naquela época ninguém comungava antes de se confessar. É muito bonito, porque o padre consentiu nisto e uma das coisas que me encanta na hora da morte do Francisco é precisamente isto. Já estava na cama, e uma das irmãs vai chamar a Lúcia porque o Francisco queria falar com ela. Isto terá sido no dia 2 de Abril, e ele pede à Lúcia «diz-me se me viste fazer algum pecado», e isto é tão bonito. É extraordinário, e sabemos os pecados: a Lúcia diz que o viu desobedecer de vez em quando aos pais quando lhe diziam para não ir ter com ela à pastagem e ele ia, e a Jacinta tinha-o visto pegar num tostão para comprar um instrumento musical sem autorização dos pais, e quando os rapazes de uma aldeia de Boleiros atiraram pedras aos de Fátima, ele também atirou pedras aos de Boleiros. Ele diz «esses já os confessei, mas volto a confessar», e depois tem esta expressão tão bonita «se calhar é por causa dos meus pecados que Nosso Senhor anda tão triste, mas eu, se vivesse, não cometeria mais nenhum, porque estou mesmo arrependido».
FC– E é depois da confissão que comunga e morre?
I.A.C.– Faz a sua confissão e no dia seguinte, 3 de Abril à noite, o prior dá-lhe a comunhão e ele fica em profunda oração. Quando a Lúcia chega, diz-lhe «hoje sou mais feliz que tu porque tenho no meu peito Jesus escondido», e no dia seguinte despedem-se de uma forma muito bonita. Lúcia descreve-a e diz «Adeus, Francisco, até ao Céu», uma despedida tão bonita, de quem morre em paz, a sofrer, mas com a certeza de que se iriam encontrar no Céu.
FC– O prior consentiu, disse. Eram tempos difíceis para eles, e nem era natural que uma criança o pedisse…
I.A.C.– Não era tão frequente. As aparições estavam numa fase… Em termos de Igreja não tinha havido pronunciamento nem sequer o início do processo canónico de aprovação. Nem sequer o bispo havia chegado à Diocese, porque Leiria estava no processo de se tornar independente do Patriarcado de Lisboa mas ainda não tinha bispo, que só chegará em 1920. Por isso é uma altura em que não há uma pessoa da Igreja que inicie os processos, está numa fase de descrédito e não está pacífico.
FC– Uma criança com uma maturidade espiritual de um adulto…
I.A.C.– A maturidade espiritual do Francisco não apenas é superior à de um bom cristão da sua idade, mas, de facto, em alguns aspectos foi alcançada por aquilo que é a nossa verdade. A verdade do ser humano enquanto filho de Deus, e isso tanto dá para as crianças como para os adultos. Ele percebe o essencial da vida e vive a partir daí. E o essencial da vida é Deus. O núcleo mais essencial é a nossa relação com Deus e o Francisco vive tudo a partir daí. Isso é excepcional, mesmo para um adulto.
FC– Como é que é vivida a morte dele?
I.A.C.– É vivida com saudade, sobretudo a Jacinta, que tem muitas saudades dele, mas era animada pela ideia de que em breve estaria com ele. Creio que a que mais sofre é a Lúcia, porque não só sofre as saudades concretas do Francisco, mas vai sofrer depois as saudades concretas da Jacinta, e uma coisa ainda mais dura, que é a solidão dos únicos que a podiam entender, os únicos companheiros de viagem numa época da História em que ela tem muito pouca gente que acredite nela, a começar pela sua mãe, que não acredita nela e não vai acreditar até ao fim. De qualquer forma, naquela época a mortalidade infantil era tão grande que não há o viver a morte como há hoje. 0 que havia era muita saudade, não só da Lúcia e da Jacinta, mas do Ti Marto, o pai do Francisco que gostava muito do menino, tinha uma afeição muito grande por ele.
FC– Qual é o papel do Francisco na “equipa” dos três pastorinhos?
I.A.C.– Eu chamo-lhe o director espiritual do grupo. A Lúcia era a líder, e o Francisco o director espiritual. Digo isto porque, naqueles momentos de dúvida da Lúcia, ele dá aqueles conselhos mais sábios, usando critérios engraçados. Durante as aparições, quando ele vê a Lúcia estar com muitas brincadeiras que lhe parecem que podem levar a atitudes que seriam um bocado pecado, como os bailes de Carnaval, ou quando ela vinha da escola em grande gritaria com os companheiros, é Francisco quem diz «então mas tu ainda andas com essas companhias? Não venhas com eles», e dá conselhos, diz «quando acabar a escola vais ter com Jesus escondido na Igreja, enquanto os meninos se vão embora, e depois vens sozinha». Dos três, ele assume este papel do conselheiro.
FC– Ele também tem aquela predileção pelo “Jesus escondido”, uma das suas imagens mais fortes…
I.A.C.– Sim. O Francisco já era contemplativo, já via a presença de Deus nas coisas ainda antes das aparições. Gostava de estar sozinho, mas com os seus botões. A seguir à aparição do Anjo e à comunhão eucarística que fizeram, o intuir que Deus estava triste e que, fazendo-Lhe companhia, O consolava, isto apanhou-o por completo, e passa a ser o centro conformador de toda a sua existência. Eu costumo dizer que ele aprendeu com «Jesus escondido» a esconder-se…
FC– Quando ia rezar na igreja, muitas vezes nem o encontravam…
I.A.C.– Como a igreja estava em obras, e o sacrário estava à porta da igreja ao pé da pia baptismal, ele ficava entre a pia baptismal e o sacrário. Ninguém o via porque ele não gostava que mais ninguém ouvisse a sua oração. Ele aprendeu a ser discreto, a fazer o bem sem ninguém saber. E ensina-nos, até no nosso tempo, este gosto pelo silêncio. Temos tanta necessidade de silêncio, porque estamos a desconectar-nos de nós próprios. Estamos tão ligados, de forma quase essencial para a vida, e não conseguimos estar em silêncio. O Francisco é um menino que continua criança com a sua actividade de pastor na sua casa. E como ele consegue encontrar tempo para ficar sozinho e em silêncio. Gosto muito de ver o Francisco silencioso a ensinar-nos a aprender o silêncio. Vejo-o quieto, sossegado, e a fazer-nos entender a relatividade das coisas. Não fui o melhor da escola… e então? É uma indiferença boa, de aceitar as suas limitações. O Francisco era o único que não ouvia, o que mais dificuldade tinha em entender, é o primeiro a ficar doente e a morrer… podia sentir-se diminuído ou colocado de parte, mas nunca o faz. Aceita a sua condição, e aceita a sua forma de participar neste mistério. Não há competição entre eles os três, e por isso não há ciúmes nem invejas. Eu acho isto tão actual, a sério. As pessoas não o conheceram tão bem, mas as poucas frases que ele diz tem impacto. Depois da canonização têm chegado mais cartas sobre graças concedidas pelo Francisco, estou a notar isto. Quando cheguei à causa as graças eram dirigidas à Jacinta ou aos dois em conjunto. Agora é aos dois em conjunto e ao Francisco, é tão engraçado…
FC– A canonização ajudou-o a tornar-se mais conhecido?
I.A.C.– Sim, o processo que levou à canonização ajudou. Eu mesma só acedi ao Francisco em 2009, nos noventa anos da sua morte. Pediram-me uma conferencia sobre o Francisco e eu pensei “uma hora a falar sobre o Francisco? O que é que eu vou dizer em uma hora? Não vou ter matéria”… Até que me pus a estudar as memórias todas só olhando para o Francisco, até sublinhei as passagens onde ele aparecia. E percebi que há muito mais sobre ele do que possa parecer.
FC– O carinho das pessoas é tão grande por eles que arrisco a dizer que a canonização foi a única viagem do Papa Francisco em que ele não era o actor principal…
I.A.C.– É extraordinário. Não sei se consigo dizer isso, mas havia muita coisa a acontecer que ultrapassava a figura do Santo Padre, e uma delas é a canonização. Repare que o Papa é interrompido duas vezes com palmas durante a leitura da fórmula da canonização. Eu senti um amor tão grande que ainda hoje, quando revejo aquelas imagens, me comovo, porque as pessoas interrompem o Papa. As palmas são tão grandes… Há um carinho muito grande, e tem aumentado muito. Às vezes é impressionante a quantidade de pessoas nos túmulos, não se consegue mesmo rezar sossegado naquela basílica.
FC– E os relatos de graças têm aumentado?
I.A.C.– Eu esperaria que terminassem de vez, mas continuam a chegar a uma media de dois ou três por semana, é bom ver isto. O que recebemos arquivamos. As vidas deles dois são inspiradoras para os cristãos de hoje. Continuamos a trabalhar para a fusão das suas vidas e da sua espiritualidade com o mesmo entusiasmo porque acreditamos que o estilo de vida deles pode ser importante para o cristão do século XXI.
FC– Porquê?
I.A.C.– Bom, pelas características de viver a partir do essencial, não nos perdermos com coisas secundárias, como a imagem, ou a roupa, ou os telemóveis e computadores. As coisas em si não têm mal nenhum, o problema é quando isto nos traz uma angústia da existência. Ajuda-me a aceitar a minha condição, dar o melhor de mim, mas aceitar quem sou, não entrando numa competição desenfreada, e às vezes desonesta, para conseguir os meus objectivos, simplesmente porque não aceito quem sou, e vivo infeliz por isso, e provoco esta infelicidade nos outros. Depois, a necessidade de parar e fazer silêncio. É o nível de saúde antropológico básico, ainda antes da minha fé. Depois ensina-nos o modo de ser crente, que passa pela Adoração Eucarística, por acompanhar Jesus, pela contemplação e pelo cuidado da Casa Comum, porque ele amava, de facto, a Natureza. E a mensagem do Papa para a Quaresma deste ano fala-nos também nisto.
Ricardo Perna
Família Cristã