Fátima e Isabel de Basilan
Encontra basto acolhimento, entre a população filipina, a tese da primazia da chegada dos portugueses ao arquipélago, por oposição à da concretizada colonização pelos vizinhos ibéricos. Não é por acaso que se atribui aos primeiros a introdução da farinha de trigo e do fabrico e consumo de pão, hábito que os espanhóis perpetuaram e difundiram nestas ilhas onde o arroz sempre constituiu pedra basilar do sustento diário. Tivessem os portugueses prevalecido e os Fernandez teriam sido Fernandes; os Suarez, Soares; os Perez, Peres; o Juan, João; e o Pablo, Paulo. Se os portugueses ensinaram os filipinos a fazer pão, é provável que tivessem também ali introduzido diferentes outros alimentos. Aos tradicionais “huevos de pescado” – uma espécie de ovos mexidos com pedaços de peixe –, prato popularizado pelo restaurante Asiong, na cidade de Cavite, é atribuída origem portuguesa. Nada que nos deva causar estranheza, pois aportavam com frequência àquele porto navios estrangeiros, muitos deles oriundos de Macau. Da ementa também o “beef salpicao” – cujo nome não deixa dúvidas quanto à sua origem – é bastante requisitado. Já a sardinha enlatada portuguesa, alimento “gourmet”, mantém-se arredada da mesa dos simples, embora há décadas ocupe as prateleiras das lojas da especialidade.
A culinária portuguesa tem vindo a fazer significativas incursões no panorama gastronómico de Manila, marcando presença na fila da frente o planetário frango “peri-peri” e, no caso do restaurante Obrero, em Davao City, uma afamada espetada de galináceo, óbvio empréstimo lusitano. Até que estágio esta fusão de ingredientes e paladares remonta na escala da História é algo que continua por apurar. Se saltarmos da cozinha para a sacristia é na devoção à Nossa Senhora de Fátima (omnipresente também nas demais comunidades do Sudeste Asiático) que devemos centrar a nossa atenção. Lado a lado com a Terra Santa e Lourdes, Fátima é o local de peregrinação estrangeiro mais popular entre os viajantes filipinos.
Mas há mais: a cidade de Isabela, capital da província de Basilan, deve o seu nome à rainha Santa Isabel, mulher de D. Dinis, e não a Isabel I, “a Católica”, de Castela, como seria mais lógico. Como explicar esta devoção à protagonista do célebre Milagre das Rosas? Também a topominia nos sugere tentadores indícios. É o caso da bela ilha de Guimaras, que alegadamente vai buscar o nome a Guimarães. Isso mo garantiu um amigo filipino, embora uma lenda local nos fale de um amor proibido entre uma princesa (Guima) e um escravo (Aras)… Bem mais fidedigno é o termo “Portuguese Point” (Cabo Português), na baía do Sual, distrito de Pangasinan, região povoada por habilidosos navegadores que desde sempre mantiveram intricada rede de comércio marítimo, conectando-os com os demais povos do Sudeste Asiático, da Índia, da China, do Japão e do resto do Pacífico. No século XVI, Pangasinan era designado pelos castelhanos como “porto do Japão”. Os locais trajavam orgulhosamente sedas chinesas e japonesas, combinando-as com as suas típicas vestes nativas; e enegreciam os dentes, como era da tradição, pois repugnava-os a esmaltada dentição dos estrangeiros. Mais: comparavam-na à dos animais. No seu dia-a-dia, usavam os pangasinanos jarros de porcelana japonesa e chinesa e as armas de pólvora que os nipónicos fabricaram em doses industriais com base no modelo legado pelos portugueses.
Atraíam àquelas paragens mercadores de toda parte, o ouro e os escravos, mas também as peles de veado, as civetas e outros produtos locais. Apesar desta extensa rede comercial, os pangasinanos eram culturalmente semelhantes aos restantes grupos étnicos da ilha de Luzon. Temerários, resistiram com coragem e bravura a conquista espanhola, tendo-os descrito o bispo Domingo Salazar como “as mais ferozes e cruéis pessoas destas terras”. Curiosamente, evidenciavam alguns dos seus comportamentos práticas cristãs anteriores à colonização espanhola, nomeadamente o uso de vinho nos ritos sacramentais. No plano moral chegavam a extremos, como punir o adultério com a pena de morte, aplicada a ambas as partes. Entre as etnias de Luzon suas rivais constavam os guerreiros aetas (naturais da região de Zambales) e negritos, ambos com traços africanos. Os pangasinanos venceram e venderam aqueles como escravos aos comerciantes chineses.
A conquista espanhola de Pangasinan iniciou-se em 1571 com a expedição de Martín de Goiti, vindo do assentamento espanhol de Manila, via Pampanga, onde mais tarde, no século XVII, os holandeses recrutaram homens para servirem de mercenários no Exército Real das Índias Orientais Holandesas. Esses indivíduos, conhecidos como “pampangers”, integrariam a comunidade das “mardijkers”, onde pontuavam muitos luso-descendentes, e parte do seu legado fundiu-se na comunidade de Tugu, na zona portuária de Jacarta. À de Goiti seguir-se-ia a expedição de Juan de Salcedo, que em 1574, no Golfo de Lingayen, mais exactamente na foz do rio Agno, teve de medir forças com a frota do pirata chinês Limahong (setenta navios, três mil piratas e quatrocentos mercenários japoneses), avançando rumo a Manila. Vencido, Salcedo recuou para avisar os compatriotas do perigo eminente.
O cerco a Manila demoraria quatro dias apenas, e Pangasinan foi o refúgio escolhido por Limahong e os seus homens que poucos meses depois, e já na segurança de uma fortaleza entretanto construída, seriam acometidos por uma força punitiva espanhola. Entre os quatro comandantes que lideraram o bloqueio, obrigando o pirata chinês a partir, constava um tal Pedro de Chaves, como o nome indica, português de origem.
Joaquim Magalhães de Castro