Filosofia, uma dentada de cada vez (59)

O que Descartes disse mais?

René Descartes (1596-1650) queria acabar com todo o cepticismo e construir um corpo de conhecimento do qual não pudesse haver dúvidas. Propôs um método que ironicamente começa com a dúvida. Isto não significa que na realidade ele de facto não duvidasse, mas como forma de procedimento ou método decidiu que em primeiro lugar iria eliminar todas as fontes de dúvida possíveis. É por isso que a intensão de Descartes é conhecida como a “dúvida metódica”.

Quais são as possíveis fontes de dúvida? Descartes nomeou três, que são todas extra-mental (isto é, exteriores à sua própria mente).

A primeira fonte de dúvida são os sentidos. Dizia que não podíamos confiar nos nossos sentidos, porque por vezes éramos enganados pelo que víamos. A esta alegação devemos responder que por vezes, devido a algum defeito nos órgãos físicos, podemos realmente cometer erros de avaliação. No entanto, é mais a excepção do que a regra. Imaginem o que aconteceria se fechássemos os nossos olhos, tapássemos os ouvidos, recusássemos sentir cheiros ou não tocássemos em nada.

A segunda fonte de dúvida é a Fé. Descartes disse que em primeiro lugar poria a Fé de lado de forma a poder construir um inabalável edifício de conhecimento.

A terceira fonte de dúvida era duvidar de tudo o que os pensadores que o antecederam tivessem dito, porque todos eles poderiam estar enganados. Descartes queria começar tudo de novo, com uma folha de papel em branco. E o que nos sobraria depois de duvidarmos de tudo? A certeza de que tínhamos dúvidas. Estou certo de que estou em dúvida. Se eu duvido, então devo estar a pensar. Se eu penso, então (a pessoa que pensa) eu tenho que existir. Cogito, ergo sum! (“Penso, logo existo!”).

E será razoável esta forma de pensar (raciocinar)? Deixem-me apresentar-vos dois contra-argumentos ao método Cartesiano.

Primeiro: Poderei construir um sistema de pensamento que começa com uma dúvida? O facto de que estou em dúvida significa que estou a pensar (se sim, a dúvida pode servir como ponto de partida?). No entanto, já vimos que duvidar significa um julgamento em suspenso, mas pensar implica um julgamento. O acto de duvidar ainda não é um acto de pensamento. Não podemos construir um sistema de pensamento baseado na dúvida. Terei de o construir a partir de julgamentos do intelecto.

Segundo: Poderei construir um sistema de pensamento que comece por duvidar das fontes do meu conhecimento? Cada campo de estudo necessita de uma fonte de dados ou informação com que se possa trabalhar. Biologia, Química, Física, Geologia, Astronomia, Sociologia, Economia, e todas as outras ciências teóricas ou aplicadas necessitam de um suprimento de dados (input) antes de poderem ter resultados (output). O mesmo também é verdade para a Filosofia. A Filosofia necessita de exposição e abertura ao mundo real (ver FILOSOFIA, UMA DENTADA DE CADA VEZ, nº 2). A dúvida metódica tem um efeito oposto: ela fecha a porta à realidade.

E qual a consequência de se fechar a porta à realidade? Esse facto não me dá outra opção senão a de criar coisas (inventar coisas) na minha (nossa) mente. E isso é o princípio da subjectivação em Filosofia. Descartes alegava que duvidar já era pensar. Mas para pensarmos temos que primeiro pensar sobre um objectivo e dados extra-mentais (primeira acção do pensamento) antes de podermos reflectir (segunda acção do pensamento) no nosso pensar – eu tenho que pensar sobre algo, só então eu posso pensar no meu pensamento.

O intelecto é a capacidade de conhecer, mas essa capacidade ou poder é activada ou espoletada por entradas de dados vindos do mundo real. Quando intencionalmente me desligar desse mundo, fico “livre” para criar o meu próprio pequeno mundo, de acordo com as minhas próprias especificações. Muitas vezes sentimos a tentação de formatar o mundo à nossa imagem, de moldá-lo à nossa semelhança. Muitas vezes sentimos o desejo de «ser como Deus (Génesis 3:5)».

Pe. José Mario Mandía

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