ESPIRITUALIDADE PARA O TERCEIRO MILÉNIO – 1

ESPIRITUALIDADE PARA O TERCEIRO MILÉNIO – 1

Tendências da espiritualidade actual

Na actualidade, os teólogos falam de uma espiritualidade pós-Vaticano II e de uma espiritualidade para o terceiro milénio. Existe hoje um interesse crescente e perceptível pela espiritualidade, em geral; e pela espiritualidade cristã, em particular. Os mestres da espiritualidade cristã continuam e continuarão a exercer uma influência fundamental na espiritualidade do terceiro milénio. Os clássicos dos místicos e de outros grandes autores também serão lidos por muitos ao longo deste milénio. Além disso, hoje em dia, uma visão global da espiritualidade inclui, de forma mais profunda e extensiva do que ontem, tradições espirituais e místicas da Ásia, de África e das Américas, bem como espiritualidades regionais.

Consideremos brevemente três pontos: algumas tendências actuais, principais características da espiritualidade de hoje e livros norteadores para o caminho da vida.

Para a teologia espiritual, a espiritualidade enfrenta hoje grandes desafios, que podem tornar-se oportunidades ou perigos, ou ambos misturados. O mundo do Século XXI, cada vez mais a aldeia global prevista por Marshall McLuhan, o “continente digital”, anseia pela presença e experiência de Deus.

Vivemos na era da globalização, da tecnologia e da secularização, num mundo permeado pelo ateísmo agressivo, pelo relativismo extremo e por novas formas de perseguição aos cristãos. Temos, na expressão do Papa Bento XVI, uma certa “desertificação espiritual” e, nas palavras do Papa Francisco, uma espécie de “mundanismo espiritual”, que está presente até em alguns grupos e movimentos católicos que procuram o “pessoal” ao invés da “glória de Deus”; o amor próprio e a valorização pessoal em vez da centralidade de Cristo, ou seja, em vez da libertação e salvação dos outros, em particular dos marginalizados. Esta espiritualidade (melhor, talvez, espiritualismo) de autoaperfeiçoamento (de “selfing” em vez de “unselfing” ou auto-esvaziamento) é descrita como “muito narcisista e obcecada apenas com a felicidade pessoal”. É uma espiritualidade qualificada como “luz”, como um “hedonismo do espírito” que, no caso dos cristãos, cria um Cristo feito sob medida, segundo o gosto e os moldes pessoais. Pode misturar elementos de diferentes religiões. A Nova Era, o Neopaganismo e a Cientologia estão entre estas correntes na espiritualidade actual.

Mas este não é o quadro completo, nem o mais complexo. Há hoje, por um lado, uma aparente insatisfação com as religiões e espiritualidades organizadas ou estruturadas. Por outro lado, há uma cada vez maior atracção pela espiritualidade, pelo “exercício espiritual”, pela “vida interior”, pelo “oculto”, pelas peregrinações. As pesquisas mostram que muitas pessoas nos dirão: “Não sou muito religioso, mas sou muito espiritual”. E, no entanto, estes inquéritos dizem-nos também que algumas devoções religiosas estão a regressar, assim como a crescente participação de pessoas em peregrinações e visitas aos chamados “lugares sagrados”. Além disso, os grupos de oração estão a crescer um pouco por todo o lado.

Certamente, no deserto do nosso mundo secular, muitas pessoas procuram o oásis da espiritualidade. Na verdade, há um anseio crescente entre muitos povos pelo espiritual, pelo transcendente, pelo místico e pelo misterioso. Há neste mundo uma atracção crescente pela espiritualidade (entendida num sentido vago). Até ateus, agnósticos, pessoas indiferentes, procuram experiências espirituais – uma espiritualidade sem Deus ou, como a autora francesa Françoise Champion cunhou, uma espiritualidade selvagem.

SABER E NÃO FAZER, AINDA NÃO É SABER –Entre as muitas características ou traços da espiritualidade cristã actual, que muito provavelmente continuarão a existir amanhã, estão as seguintes: Centralidade em Cristo; carismático/pentecostal; bíblica, litúrgica e eucarística; graça-virtude-dons; espiritualidade feminina e leiga; histórico e escatológico; espiritualidade contemplativa e libertadora; dialógico, ecuménico e intercultural (da competição à cooperação); e global e contextual.

Alguns teólogos falam em quatro níveis de espiritualidade, a saber: a espiritualidade como dimensão fundamental do ser humano; a espiritualidade como “experiência” da presença de Deus ou da integração humana através da auto-transcendência; a expressão ou formulação dessa experiência; e estudo sistemático dessa experiência e sua formulação (Michael Downey).

Joann Wolski Conn encontra cinco tendências diferentes nos actuais estudos sobre espiritualidade: “atenção sustentada às questões feministas, preocupação com a ligação entre oração e justiça social, confiança em fontes clássicas para respostas a questões actuais, reconhecimento do valor da psicologia do desenvolvimento e a compreensão do ‘eu’ e o acordo de que a experiência é o ponto de partida mais apropriado”. Por sua vez, Richard Woods sublinha seis características existentes em qualquer tipo de espiritualidade, idealizada “para um futuro possível”. Ela é holística, fundamentada na Bíblia, orientada para o desenvolvimento, sobressaindo a afirmação da vida social e a responsabilidade social e ecológica.

Paul Lin aponta como elementos essenciais da espiritualidade cristã (ou da vida cristã hoje): o retorno às Sagradas Escrituras, à Liturgia e aos Padres da Igreja; a confiança e o amor a Deus como fundamento da espiritualidade; alguma abertura para a contemplação; um caminho para ajudar as pessoas a se amarem umas às outras; e a rejeição da violência.

Além disso, alguns teólogos contemporâneos referem vários modelos do ideal cristão em relação à vida e à espiritualidade: modelos de santidade, de perfeição, de união com Deus, e fazer a vontade a Deus e seguir Cristo.

Richard Gula fala do “modelo ascético, do modelo encarnacional, do modelo contemplativo e do modelo do activista social” – todos eles se complementam.

Donald Goergen sublinha que a espiritualidade do terceiro milénio enfrenta quatro desafios: contemplação (diálogo com outras religiões e cristãos), “o outro” (diálogo de culturas), solidariedade (diálogo com os pobres) e uma nova visão cósmica (diálogo com a Criação). Goergen acredita – e nós concordamos plenamente – que o maior desafio do Cristianismo, da espiritualidade e da teologia em geral é “só vivermos aquilo em que acreditamos”; o desafio dos “próximos séculos será o da ortopraxia”.

O maior desafio da espiritualidade no terceiro milénio – tenho para mim – é, sem dúvida, a prática correcta, a ortopraxia. Nos dias que correm, o estudo da teologia espiritual – da vida cristã – não consiste apenas em saber, mas em praticar: “Saber e não fazer, ainda não é saber” (Lao Tsé). Estuda-se a espiritualidade para procurar Deus – o espaço interior –, para ser transfigurado, para pregar a Boa Nova de Jesus: justiça, caridade, amor misericordioso, fé e esperança corajosa.

Pe. Fausto Gomez, OP

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *