De pé, sem “halos”, junto à Cruz com o olhar fixo em Jesus
Talvez conheça a Cruz de “São Damião”. São Francisco de Assis, ainda com vinte e poucos anos de idade e sem saber bem qual seria o seu futuro, estava a rezar diante desta cruz quando ouviu a voz de Deus que lhe ordenou “reconstruir a minha Igreja”. Este crucifixo foi pintado por um artista desconhecido no Século XII e depois foi abandonado na igreja de São Damião, perto de Assis, até que o jovem Francisco o recuperou.
Gosto particularmente desta cruz porque tem muitas figuras e símbolos. Além disso, Jesus nesta cruz não tem o corpo de um homem em agonia. Em vez disso, está de pé, com os olhos bem abertos, irradiando a esperança da Ressurreição. As suas mãos já não estão apertadas, mas abertas num gesto de boas-vindas. Como Jesus disse no Evangelho do passado Domingo: «Quando for levantado da terra, atrairei todas as pessoas para mim» (Jo., 12, 32).
Durante este Domingo de Ramos, depois da proclamação da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ouviremos a narração da Paixão segundo Marcos (cf. Mc., 14, 1 – 15, 47).
Marcos descreve os sofrimentos de Jesus com grande pormenor. As únicas palavras de Jesus na Cruz são uma pergunta desesperada, citada do Salmo 22: «Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?». Depois disso, Jesus morre na Cruz emitindo um grande grito inarticulado. O momento da morte de Jesus parece obscuro e incompreensível, muito diferente da serenidade mostrada na Cruz de “São Damião”.
Mas uma particularidade desta cruz está definitivamente em sintonia com a narração da morte de Cristo: a presença do centurião: «E, quando o centurião, que estava bem em frente de Jesus, ouviu o seu brado e viu a maneira como expirou, exclamou: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!”» (Mc., 15, 39).
Este soldado endurecido, responsável pela execução de Jesus, parece profundamente tocado pela forma como Jesus morreu. Ele desempenha um papel crucial no Evangelho de Marcos, que começa com as palavras: “O início da boa nova sobre Jesus, o Messias, o Filho de Deus” (cf. Mc., 1-1). Durante a narração da vida de Jesus, Marcos convida-nos, passo a passo, a descobrir o mistério da identidade de Jesus e o sentido da sua missão. Jesus tem todo o cuidado em não o revelar demasiado cedo, para evitar interpretações erróneas e, sobretudo, para evitar assumir um papel de líder político ou de fazedor de milagres. Marcos descreve Jesus a ordenar severamente às pessoas que não contassem a ninguém as curas que efectuava. Ordenou aos demónios exorcizados que se calassem e que não revelassem aos outros o seu estatuto divino. Chegou mesmo a repreender Pedro, depois da sua confissão de fé, porque este se recusou a aceitar a predição de Jesus sobre a sua morte (cf. Mc., 8, 31-32).
Só este centurião, pagão, é capaz de desvendar o segredo da verdadeira identidade de Jesus e reconhecer a sua divindade enquanto ele está na Cruz. Ao fazê-lo, está a reconhecer implicitamente a possibilidade de encontrar a presença de Deus mesmo no canto mais escuro da experiência humana: a solidão da morte. Ele, um homem habituado a ver a violência e a injustiça, vê em Jesus moribundo um poder mais forte do que o mal que experimenta quotidianamente na sua profissão e, provavelmente, também no seu próprio coração.
Aos pés da Cruz de “São Damião” há cinco figuras principais. À esquerda, a Virgem Maria e João, os discípulos predilectos. À direita, Maria Madalena e Maria, mulher de Cléofas. Todas elas estão adornadas com auréolas (“halos”). Só o centurião pagão não tem auréola.
No entanto, o soldado não acorrentado é o único entre eles que olha atentamente para Jesus. Como escreveu uma vez o Papa Francisco: “Deus supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa e não somos nós que determinamos a circunstância histórica em que O encontramos, já que não dependem de nós o tempo, nem o lugar, nem a modalidade do encontro. Quem quer tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus. Nem se pode pretender definir onde Deus não Se encontra, porque Ele está misteriosamente presente na vida de toda a pessoa, na vida de cada um como Ele quer, e não o podemos negar com as nossas supostas certezas. Mesmo quando a vida de alguém tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos destruído pelos vícios ou dependências, Deus está presente na sua vida. Se nos deixarmos guiar mais pelo Espírito do que pelos nossos raciocínios, podemos e devemos procurar o Senhor em cada vida humana” (Gaudete et exsultate 41-42).
Durante a Semana Santa, também nós, longe de sermos santos, queremos estar aos pés da Cruz com o centurião sem “halos” e fixar os nossos olhos em Jesus. Também nós, como ele, desejamos descobrir a presença e a misericórdia de Deus nos recantos mais obscuros do nosso coração e do nosso mundo. E, ao fazê-lo, passo a passo, como nos ensinou Marcos e como fizeram os catecúmenos na sua caminhada para o Baptismo, entraremos na Ressurreição de Cristo.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ