CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 82

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 82

Conversa teológica com um escravo

A travessia daquela série de desfiladeiros, pântanos, bosques e montanhas que dividem o Chatigão do Arracão demorou onze dias. Os membros da expedição avançaram cautelosamente, “disparando tiros ao acaso”, não fosse o tigre atacar de novo, até chegarem a uma clareira florestal onde decidiram acampar.

A chuva era tanta que não foi possível acender o fogo para fazer o jantar, valendo-lhes os biscoitos que Gonçalves Tibau, homem habituado a longas travessias marítimas, trouxera por precaução e em quantidade suficiente. Se reconfortado ficou o estômago, do feroz vendaval dessa noite não se livraram. E quando o dia amanheceu, encharcados estavam todos, “até aos ossos”. Nessa condição continuaram no dia seguinte, mas Deus, “na sua infinita misericórdia”, permitiu que o firmamento desse tréguas essa noite. Puderam assim acender fogueiras, secar as roupas e cozinhar uma refeição aconchegante. E como a noite estava de feição para as passeatas das muitas feras que pululavam selva, fizeram os homens dos ramos das árvores o seu leito. Não se queixa Manrique do improvisado repouso, mas se lhe tivesse calhado em sorte uma dessas espécies arbóreas dos trópicos, por norma infestadas de formigas vermelhas (cuja picada é bem pior que a de uma abelha), outro galo cantaria. Maurice Collis, na sua obra “A Terra da Grande Imagem”, evoca a propósito uma insólita e trágica notícia datada de 1926. Em Julho desse ano, um dos primeiros aviões a cruzar os céus àquela latitude despenhara-se na densa selva, e os sobreviventes, ao fim de alguns dias, “perdidos e exaustos”, acabariam por ser devorados aos poucos pelas formigas vermelhas.

Na manhã seguinte, descida a serra, deparou a comitiva com uma série de cabanas feitas de bambu e cobertas com folhas de palmeira. Estavam desertas. Em boa hora ali chegaram, pois do céu sobreveio a habitual tormenta. De tão intimidante, a chuva levou-os a abandonar os planos de prosseguir a marcha; e ali ficaram a descansar 24 horas.

Manteria Manrique, durante a forçada parada, interessante conversa com um dos cativos muçulmanos, a qual o frade portuense transcreve. Perguntava-lhe aquele, ao vê-lo ler o Breviário, a quem oravam os cristãos? E se era ao “único Deus verdadeiro” – como garantia Manrique – então por que razão estavam as igrejas cheias de imagens? Manrique riu-se da pergunta, depreendendo que o escravo deduzira que os cristãos adoravam os ídolos da mesma forma como o fazem os hindus. Por isso tratou logo de explicar a diferença entre um crucifixo, ou uma imagem da Virgem ou dos santos, e um ídolo. A conversa atraiu alguns outros escravos, facto que deixou Manrique satisfeito. Curioso por natureza, quis saber o seu interlocutor quantas religiões estabelecera Deus na terra. Além do Judaísmo e do Cristianismo, Manrique dizia haver uma terceira, recusando-se porém a dizer qual. Riu-se desta feita o cativo: “Para um homem do seu estatuto, você é surpreendentemente ignorante. Então você não sabe que Deus criou quatro religiões e fez com que fossem reveladas em sequência?”. Logicamente, para o muçulmano, a última dessas revelações teria sido levada a cabo pelo profeta Maomé, sendo portanto “a mais completa”.

“Se é tudo que você tem a dizer”, replicou Manrique, “garanto-lhe que só através do Cristianismo se consegue a salvação. A crença que você segue apenas leva à condenação total”. Escandalizaram-se os cativos, tapando os ouvidos para não ouvir tal heresia. Mas o frade estava imparável e começou a pregar-lhes um sermão que eles ouviram pacientemente até ao fim, e só depois, após proferir a célebre frase do Alcorão, “Deus é misericordioso”, se levantaram dos seus lugares e deixaram a cabana.

Como podia Manrique ter esperança de converter tal gente!? Não esqueçamos que mais não eram que antigos moradores muçulmanos das aldeias ribeirinhas do Leste de Bengala sequestrados por traficantes de escravos cristãos e vendidos por eles ao rei de Arracão para trabalhar nos campos de arroz.

Porém, o cativo filósofo (chamemos-lhe assim) naquela noite matutou nos argumentos que Manrique havia apresentado. Será que afinal estivera errado a vida inteira? Tão agitado e cheio de dúvidas ficou que na manhã seguinte, antes do início da marcha, foi ter com Manrique e confessou-lhe: “Durante toda a noite não teve descanso a minha mente. Será que podemos discutir essa sua crença com mais detalhe quando chegarmos ao capital?”. Manrique, rejubilou. Sim, com certeza. Iria falar com ele com mais profundidade quando voltassem a parar. Alertou logo o escravo-filósofo que isso não era nada aconselhável. Caso o vissem os seus companheiros a falar de novo com o padre estrangeiro, ficariam desconfiados ou até mesmo zangados. “Será melhor falarmos quando chegarmos a Mrauk U”, sugeriu o asiático. Ainda insistiu Manrique, pois temia que ele pudesse morrer na marcha desvanecendo-se assim a esperança de fazer um novo converso. “Talvez o diabo saiba que você vai morrer e por isso tenta impedir que encontre a verdade, de modo que a sua alma não lhe escape”, argumentava o frade. Resposta do escravo: “Nenhum homem pode escapar ao seu destino”. A verdade é que Manrique nunca mais conseguiu falar com ele. Embora se tenha esforçado para o encontrar no Arracão, “não mais consegui obter notícias”, nem dele nem dos seus companheiros.

Joaquim Magalhães de Castro

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