Mahamuni, a “Grande Imagem”
Depois de termos dado conta do restante percurso de Sebastião Manrique, regressemos a Mrauk U. Até porque é altura da abandonar definitivamente a região. Terei de passar uma vez mais por Sittwe, não sem antes fazer uma visita a Kyawthu, a cidade mais ao norte do Estado de Arracão. Nos arredores são ainda visíveis as ruínas da antiga capital, Dhanyawaddy. Desse reino, grande produtor de arroz, restam apenas os alicerces de alguns edifícios e restos de uma muralha com um perímetro de cerca de dez quilómetros. Hoje, únicos sinais da presença humana, as tendas sazonalmente erguidas e os centros de meditação abertos para atender o fluxo de peregrinos ao santuário de Mahamuni, a “Grande Imagem”, ou seja, a mais sagrada representação de Gautama Buda.
Embora a lenda e o folclore locais afirmem que o Reino de Dhanyawaddy existia antes da época de Buda, as evidências arqueológicas apontam para que tenha surgido entre os Séculos IV e VI. Reza a lenda que Buda, acompanhado de quinhentos dos seus discípulos, visitou Dhanyawaddy, facto que levaria de imediato os nobres a ocorrerem em romaria à sua presença, prontos a doaram o ouro e a prata para serem derretidos e transformadas numa imagem que eternizasse o Iluminado. Diz-se que o próprio Buda forneceu sete gotas de suor, “retiradas do peito”, que seriam adicionadas ao metal derretido. Ao fazê-lo, Gautama encarnava nessa estátua para todo o sempre. Um manuscrito de folha de palmeira, intitulado Sappadanapakarana, fornece um resumo detalhado da feitura dessa imagem, “como lembrança de sua permanência no país”.
Dentro do precinto do santuário de Mahamuni, no mais alto dos três pavimentos, podemos ver o sino de Yattara cujas inscrições mágicas e tábuas astrológicas gravadas no bronze têm vindo ao longo dos tempos a proteger o Arracão de todas as invasões. É o “objecto mais velho, mais misterioso e mais sagrado de todo o mundo”, e graças a ele, garantem os monges, o Arracão mantém-se terra budista por excelência. É claro que semelhante estatuto se deve ao facto de já lá não morar a adorada imagem de Mahamuni, sinal de prestígio não só para os monarcas da dinastia Mrauk U como para os de todo o mundo budista theravada. Ao que tudo indica, e após repetidas tentativas falhadas de se apoderarem da estatueta, precisamente no decorrer das investidas birmaneses, esta acabaria por ser levada pelas forças invasoras em 1784 e está hoje exposta em Mandalay, na Alta Birmânia, naquele que é conhecido como “pagode de Arracão”. Mas neste particular divergem as fontes birmanesas e arracanesas. Estas admitem que a imagem de Buda de facto desapareceu – do templo ou quando os birmaneses a tentavam transportar numa barcaça rio abaixo – mas garantem que ela nunca deixou o território arracanês, encontrando-se algures em parte incerta.
De Mrauk U a Dhanyawaddy é hora e meia de camioneta, porém, até meados da década de 1950, e antes que o assoreamento bloqueasse o canal, era possível chegar ali de barco. Manrique, de resto, recorre à via fluvial. Após aventurosa jornada através das selvas de Bengala, encontrar-se-á finalmente com o rei arracanês, na altura em romagem ao santuário de Mahamuni. Após a solicitada audiência – que muito bem correu – o rei ficou convencido da boa fé dos portugueses. Pediu então o frade portuense autorização para prosseguir até Mrauk U, e uma vez esta concedida desceu até à capital…
Lembra Maurice Collins, e bem, que dista um sítio do outro vinte milhas, se bem que os meandros dos rios, as estradas da época, obrigassem os viajantes a percorrer outros tantos. Manrique e companheiros desceram o Caledão numa galera providenciada pela polícia do rei e sob a protecção de um samurai japonês (havia uma comunidade de cristãos nipónicos) que se oferecera para fazer a escolta com alguns dos seus homens. Todo o dia remaram os escravos.
Pouco antes do anoitecer viram chegar na direcção oposta umas quantas galeras, profusamente embandeiradas, que se puseram a saudá-los com descargas de pólvora seca e alaridos de cornetins. Eram os portugueses de Daingri-pet, liderados pelo chefe da classe mercenária: o capitão Manuel Rodrigues Tigre. Diz-nos Manrique que a galera onde aquele seguia arvorava bem alto “o estandarte com o escudo português” e “as cinco chagas de Cristo eram bem visíveis”. Fora de tal modo exuberante a demonstração de boas-vindas que o frade, habituado a coisas mais discretas, não foi capaz de esconder o seu desagrado. Porém, a pronta explicação do capitão Manuel Tigre devolver-lhe-ia o sorriso. E na verdade, ela fazia todo o sentido. O aparato explicava-se por uma necessidade absoluta de manter o prestígio e, por acréscimo, a sobrevivência naqueles domínios. Num país onde os monges eram altamente venerados – os de mais alta patente usufruíam de um estatuto próximo do monarca – seria encarado como sinal de franqueza a ausência de pompa e circunstância na recepção a tão alto dignatário da religião dos estrangeiros. Em boa verdade, a fama de Manrique tinha-se, entretanto, disseminado pelo reino. Este singular encontro teve lugar a quinze milhas de Mrauk U, assim que a noite foi passada num lugarejo ribeirinho e só na manhã seguinte prosseguiria o séquito até à cidade dourada.
Joaquim Magalhães de Castro