Manrique, falso traficante de escravos
Face à suspeita de pirataria, Manrique apressou-se a dissociar-se de Dianga ou de Arracão. No fundo, apresentando a história que tinha como alibi, posto não poder revelar a verdadeira natureza da sua missão. Disse-lhes que eram mercadores portugueses; e que a caminho de Banja tinham sido atacados por biltres arracaneses que lhes sonegaram a embarcação e respectiva carga. E prometeu choruda recompensa, caso os ajudassem a sair do apuro. Tal explicação deixou os barqueiros aliviados; prontamente aquiesceram, porém, alertavam, numa pequena canoa como aquela longe não iriam… Eis o que propunham: a três milhas dali acampavam alguns dos seus companheiros, ocupados na colecta de goma-laca, estando prevista a chegada de um barco para carregar o produto dentro de dias. Levariam “suas senhorias para as cabanas”, e ali poderiam esperar em segurança. Para homens famintos e desesperados notícia semelhante era, sem dúvida, maná providencial. Acomodaram-se os quatro como puderam na canoa e em pouco tempo chegaram ao acampamento dos jornaleiros, tendo estes lhes preparado de imediato um consistente caril. “Ver todo aquele alimento foi como estar defronte do Paraíso”, comenta Manrique. Nessa noite, de novo os atormentaram os mosquitos; mas dessa feita tinham panos para se cobrir. Apesar da gentileza dos seus bons samaritanos, os portugueses acharam prudente revezarem-se e manter a vigia: todos os cuidados eram poucos.
Na manhã seguinte, dois homens vieram dizer-lhes que iam a uma aldeia vizinha comprar uma cabra para seu sustento, enquanto o resto estaria ausente recolhendo goma-laca até ao anoitecer. Os portugueses, ainda muito cansados, fiaram-se nos aldeãos e voltaram a adormecer, desta vez sem se darem ao trabalho de montar guarda. Ao chegar à aldeia os dois bengalas contaram a novidade e logo ela chegou aos ouvidos do chefe local que não teve dúvidas: os forasteiros eram invasores, não mercadores! Tratou de reunir uma força de sessenta aldeões armados com espadas e arcos, e partiu para o bivaque dos apanhadores de goma-laca. Aí depararam com os portugueses adormecidos. No momento em que tentavam amarrar as mãos de Manrique, depois de sorrateiramente se apoderarem dos arcabuzes, Trigueiros, acordando de sobressalto, sacou de uma adaga que trazia escondida e feriu dois deles. Esta resistência à prisão confirmou as suspeitas do chefe, e enfureceria os camponeses, que começaram a pontapear o rosto dos portugueses, cuspindo neles e praguejando obscenamente. Levaram-nos depois ao chefe, “sentado num tapete do lado de fora”, e este quis saber quem eram e o que estavam ali a fazer. Mas mal os prisioneiros começaram a dizer de sua justiça, o mandante nada mais quis ouvir e ordenou que fossem aplicadas cinquenta chibatadas, “com chicotes de pele de búfalo”, a cada um deles. “Açoitaram-nos tão impiedosamente que os nossos ombros ficaram em carne viva”, conta Manrique. Foram depois levados para a aldeia como troféus de caça, ao som de tambores e flautas. Estavam convencidos os camponeses de terem capturado alguns desses “rufiões desumanos, que durante tantos anos haviam tornado a vida deles numa desgraça”.
Três cacizes muçulmanos saudaram a detenção invocando o nome do Profeta, para que este abençoasse o chefe da aldeia pela coragem demonstrada face aos infiéis. Dizia um deles, com voz estridente: «Devem todos saber que estes incréus são inimigos do céu e da terra. Eles são inimigos do céu porque o seu credo maligno sempre foi o de destruir a verdadeira fé; e são inimigos da terra por causa das suas más acções: roubando, matando, banhando-se em sangue, privando-nos da vida e da liberdade». E enquanto isto dizia, o imame, dominado pela emoção, ou exagerando no teatro (o que é mais provável), levava as mãos aos olhos e uivava de tristeza… Comentava Manrique que ele mais parecia “um cachorro mau, seguidor do Diabo”. Inflamados pelas palavras do clérigo, os aldeões estavam agora num frenesi tal que avançaram para os portugueses com varas e facalhões, valendo a pronta intervenção do líder da aldeia, impedindo-os que chegassem a vias de facto. «Não devemos fazer justiça com as próprias mãos», afirmava. «Esses homens serão enviados às autoridades competentes para julgamento, e certamente serão condenados à morte pelos seus crimes». Satisfeita com tal garantia, a multidão refreou os ânimos e os prisioneiros foram prontamente arrecadados. Com os ombros ensanguentados, os rostos negros e azuis dos hematomas, cobertos de saliva e de mãos amarradas a situação dos portugueses inspirava piedade. Mesmo assim, havia quem não resistisse em picá-los com a ponta das flechas e algumas mulheres e crianças atiravam-lhes lama e dejectos. Ao chegar à aldeia, foram os desventurados colocados num estábulo na companhia de dois elefantes e sete cavalos, onde permaneceram sob guarda, longe da fúria da multidão mas de mãos sempre amarradas, sem que pudessem lavar as feridas e em 24 horas receberam apenas uma refeição.
Joaquim Magalhães de Castro