Brinquedos para os príncipes
Demonstrando forte astúcia, sabendo que Thiri Thudhamma tencionava ver um par de jovens elefantes trazidos da fronteira ocidental pelos seus caçadores, Manrique dirigiu-se ao palácio com o intuito de provocar um encontro informal com o monarca. E como também sabia que os principezinhos, de quatro e sete anos, estariam presentes, levou com ele alguns brinquedos, um trunfo lá muito dele.
Chegado ao palácio posicionou-se entre os nobres para que o pudesse ver bem Thiri Thudhamma, que lhe falou em Hindu, como sempre. «– Padre, então, veio ver os elefantes?». Respondeu-lhe Manrique, como bom cortesão, que ver o rei era o melhor dos espectáculos, sobretudo «parecendo-me Sua Majestade estar tão bem», facto atribuído à protecção de Deus Nosso Senhor. Obséquios concluídos, Manrique juntou-se à procissão que se dirigia para o pátio onde seriam exibidos os paquidermes, e ali se deteve, ocupando cada um os lugares correspondentes ao respectivo grau hierárquico.
O benjamim do rei havia sido carregado nos braços de um membro da família que, por coincidência, calhou ao lado de Manrique, sentando confortavelmente a preciosa carga numa almofada. Face a uma oportunidade de ouro como esta, o frade não hesitou: tirou da manga uma caixa de laca preta e dourada onde guardava um dos brinquedos e mostrou-a ao garoto, e este, claro, quis saber do conteúdo. O frade, sorriso vitorioso, abriu diligentemente a tampa e do interior retirou um cãozinho que automaticamente se pôs a mover as patas. Estávamos perante mais uma invenção dos chineses, conhecidos pela engenhosidade que emprestavam aos seus brinquedos… Radiante, o principezinho pegou no boneco e correu a mostrá-lo ao pai, que, divertidíssimo, desatou a rir com aquele involuntário balançar de patas. Ao lado dele, o garoto mais velho pegou no cãozito e começou a brincar com ele. O caçula, claro, não gostou, tentou recuperá-lo e como não o conseguiu fez birra, seguida da habitual choradeira. Interveio o rei, devolvendo o brinquedo ao mais novo; soluçando, o mais velho perguntou ao frade se não tinha um para ele também… Manrique, que tinha tudo bem planeado, da espaçosa manga da sotaina tirou uma bainha de veludo verde contendo dois punhais do Ceilão, uma prenda mais adequada à idade do delfim, no entender de Manrique. Enfeitavam os punhos de cristal ouro e pequenos rubis, “mais vistosos do que dispendiosos”, como diz o nosso frade. Encantado, o miúdo tirou do cinto a sua adaga – peça valiosíssima, punho em ouro com uma grande pérola no topo, e a bainha, de ouro também, incrustada com safiras – e enfiou os dois punhais de Ceilão em seu lugar, entregando a Manrique a adaga como retribuição pelo presente. O nobre gesto foi muito aplaudido pelos cortesãos e deixou o rei satisfeito. Thiri Thudhamma, exibindo os punhais nas palmas das mãos, lembrou o filho que recebera dois punhais em troca de uma adaga, e depois, chamando o irmão disse: «– Mas tu não retribuíste o padre, por isso vou ter de o fazer por ti».
Iam chegando entretanto ao pátio os elefantes; o rei levantou-se e atirou-lhes feixes de cana-de-açúcar enquanto ia falando com eles como quem fala com um animal doméstico. Convém lembrar que o elefante estava para o Arracão como o cavalo para a Europa, ou o camelo para os desertos das Arábias. Finda a refeição, os animais dirigiram-se a um tanque ali próximo para se refrescarem, alegremente esguichando água para todos os lados.
Terminada a apresentação, Thiri Thudhamma sentou-se de novo na galeria e perguntou a Manrique se havia elefantes em Portugal. Fez-lhe ainda uma série de perguntas acerca dos “recursos navais do vice-rei de Goa”, pois há muito cogitava a viabilidade de uma aliança com os portugueses. Manrique ia-lhe respondendo, positivamente, claro está, preparando-o para o pedido que tinha a fazer… «– Senhor da Vida», disse ele, «graças à misericórdia de Deus e à grande bondade de Sua Majestade, a nossa igreja foi construída. Mas, como Vossa Majestade sabe, um santuário necessita de escravos para mantê-lo fresco e limpo, para que Deus habite nele». Mas como não possuíam os cristãos escravos de sua conta, será que o monarca lhes podia indicar alguns? Seguir-se-iam promessas de recompensa divina, “Deus o terá sempre em sua guarda”, caso concordasse… Ignorando o que estava por detrás de tudo aquilo, pareceu-lhe bem pequeno o pedido, daí que Thiri Thudhamma tenha imediatamente anuído, encarregando logo um dos seus ministros para que tratasse do assunto. «– Esses escravos serão a paga do seu filho pela oferta dos punhais», declarou, antes de se retirar, acompanhado por todo séquito que chegado à porta dos aposentos reais, guardada por umas quantas amazonas, se ajoelhou à sua passagem.
Estávamos em Janeiro de 1631, residia Manrique no Arracão há seis meses: era chegada a hora de abalar. Com o tempo de feição (excluída a rota terrestre, portanto) desceu o Kaladan numa galera até à foz e guinou a norte, tendo chegado a Dianga poucos dias depois. Todo esse ano e o seguinte aí desempenhou funções de vigário, coordenando os trabalho da construção de uma igreja (Thiri Thudhamma dera-lhe a ansiada permissão) em Angaracale, um povoado de pescadores, e tratava de reunir os cristãos dispersos pelas diferentes partes da província de Chatigão. Os missionários tentaram congregar, em aldeias isoladas ou bairros da cidade, toda a população cristã, e o padre Manrique esforçou-se bastante para implementar esse objectivo. Era uma estratégia para fazer com que os convertidos nativos abandonassem os seus “ritos pagãos” e induzissem as esposas nativas dos mercenários portugueses a adoptarem a fé cristã.
Joaquim Magalhães de Castro