CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 56

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 56

lojiedoPortugi Kondet

Eis-nos chegados ao nosso destino. Uma área de cerca de oitenta metros quadrados protegida por uma cerca de arame e um portão e identificada pela usual placa cor carmesim-cardeal. “Portuguese Depot”, isto é, “posto de comércio” ou “armazém”, provavelmente as duas coisas. Em boa verdade tudo o que resta é a ruína de um edifício rectangular, três dezenas de metros quadrados, se tanto, mantendo-se de pé significativos troços de todas as paredes, sobretudo os quatro cantos. A que está em melhor condição conta com duas janelas de arcos ogivais encimadas por dois outros orifícios. A entrada, com metro e meio de largura, faz-se pelo lado da rua, o lado leste, sendo o acesso todo ele lajeado. A base do edifício assenta num plano mais elevado; o interior encontra-se pejado de pedras e restos de tijolos. Como medida de protecção, o habitual tecto de zinco a imitar átrio de pagode, mas neste caso com altura suficiente para dar a necessária e conveniente visibilidade ao conjunto. Com gestos largos, Soe recorda que quando era miúdo viu o edifício ainda completo, «com tecto e tudo». Mas como ninguém lhe dava valor e não fora classificado pelas autoridades competentes, a gente das redondezas começara a levar as pedras para fazer obras lá em casa ou reparar um pedaço degradado do caminho ou o muro do tanque. «Até há pouco tempo o departamento arqueológico ignorava este espaço, e por todo o lado cresciam arbustos e ervas. Sabe, nessa altura não havia ainda turismo», comenta com ironia o meu interlocutor, chamando a atenção pouco depois para uma porção da estrutura nitidamente afectada pelo crescimento de uma árvore. «Recordo-me de a ver ainda muito pequena», diz.

Quando o poder local decidiu acordar para a realidade mais de metade do edifício tinha desaparecido. O pai de Soe foi dos que se insurgiram contra a incúria, mas temeu represálias. Pensar fora da caixa, mesmo em nome do bem comum, traz quase sempre nefastas consequências nestas longitudes. Registo em vídeo o valioso depoimento de Soe sabendo de antemão que irei ter dificuldade em entender o que diz. É que na casa ao lado decorre uma festa de baptizado e a aparelhagem, de goela escancarada, vomita “pop” birmanesa em todas as direcções, sem apelo nem agravo. Por estas bandas, tempo seco é tempo de festas já que os meses de monção, de tão bravos, não permitem grandes ajuntamentos. A oeste, por detrás da parede com as janelas ainda, a ramagem de um espesso palmeiral esconde um braço de rio apertado. Impossível tentar visualizar ali uma nau ancorada, embora isso acontecesse com frequência, se não antes, pelos menos ao longo de todo o Século XVI e grande parte do século ulterior. Entenda-se: o volume de água e a extensão fluvial eram então imensamente maiores.

Os aldeões denominam o local “Portugi Kondet”, tradução em Arracanês do termo inglês “Portuguese Depot”, garantindo que aqui guardavam os portugueses os seus produtos depois de devidamente taxados. «Eles e os holandeses», esclarece Soe, «ambos estavam autorizados a entrar em Mrauk U». De facto, há notícia dos holandeses terem estabelecido na cidade, por diversas ocasiões e de forma intermitente, entre 1608 e 1634, um entreposto, devidamente assinalado no mapa de Wouter Schouten a sul do “De Stad Arakan” com a bem legível palavra “lojie”; mapa esse, de resto, onde surgem outros nomes em Português, como é o caso de “Rio Mayu”. O termo “lojie”, curiosamente, deriva do nosso “loja”. Assim se designa um edifício do género, bem mais preservado e com um andar acrescido ao rés-do-chão, na costa norte da ilha indonésia de Amboíno. Se os holandeses designavam de “loja” o seu entreposto é porque anteriormente houvera aí algo de similar sob gestão portuguesa, daí o “Portugi Kondet” adoptado pelos locais; isto, se aqui posicionarmos a historicamente comprovada feitoria holandesa, como parece ser o caso. Seja como for, acho muito estranho a ausência de uma menção que seja a tão relevante monumento no relatório de Emil Forchhammer. Mesmo que nunca aqui tenha posto os pés, era praticamente impossível não ter ouvido falar dele. Será porque saía da esfera do budismo-hinduismo, área de estudo do investigador helvético?

No exterior do recinto, fora da área resguardada pela vedação, quatro homens sentados à sombra de uma figueira-de-Bengala entretêm-se com um jogo tradicional. No meio deles está uma tijela onde deixam cair seis cauris, tal como se faz com os dados, uma, duas, três vezes, e assim vão pontuando consoante o flanco em que o cauri se detém. Todos têm à sua frente um cartão dividido em 24 quadradinhos onde vão traçando cruzes à medida que perdem. Ou que ganham, não tenho bem a certeza. Estou para aqui a tentar decifrar as regras da curiosa partida, quando Soe me alerta para um pequeno pedaço de parede com tijolos e pedras de tal forma enredados pelas raízes da gigantesca árvore – assim a modos de Angkor Wat ou fortaleza de Solor – que praticamente passa despercebido. Ao notar o meu imediato interesse, levanta-se um dos jogadores, o mais jovem, ares à Keanu Reeves, certamente luso-descendente, e apressa-se a dizer que aqui eram taxados os barcos com destino a Mrauk U. Ou seja, a gente local sabe bem qual a antiga função da turisticamente ignorada ruína.

Joaquim Magalhães de Castro

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