Costa da Memória

Focas monjas do Cabo Branco

Acabaria por apanhar boleia de um guineense da Guiné-Conacri, que ia buscar o seu patrão, um engenheiro que o aguardava à entrada da unidade fabril. E ali fiquei, ainda longe do tão ansiado Cabo Branco, confrontado com um estradão onde quase não circulavam veículos. Por sorte, consegui nova boleia, desta feita de um operário costa-marfinense enfiado num fato-macaco. Colibaly Solick disse-me que me levaria até um cruzamento mais adiante, onde teria mais possibilidades de encontrar transporte; porém, talvez por descarga de consciência, completou os dez quilómetros que nos separavam do cabo. Um percurso de solavancos, no saibro vermelho e nas dunas que ocultavam, aqui e ali, troços de antigos carris. Não pude deixar de pensar, o caminho todo, nas assustadoras minas que nos podiam surpreender a qualquer momento, pois outrora fora campo minado a totalidade daquele terreno.

«– Tempos houve em que podia ser utilizada a estrada da fábrica, mas agora não nos resta alternativa senão atravessar esta terra de ninguém», comentava Colibaly.

Próximo do farol, que, juntamente com a carcaça de um navio assente no areal, qual ruína pós-industrial, assinala o Cabo Branco, veio de imediato ter connosco um homenzinho esquálido. Era assim uma espécie de guarda. Embora não parecesse, estávamos numa reserva marinha. Estendi-lhe umas quantas ougyas e ele, convenientemente, esqueceu-se de me entregar o bilhete, perguntando-me de imediato:

«– Quer ver as focas?»

A questão apanhou-me de surpresa. Pensei que isso já não fosse possível, pois ouvira dizer que tinham sido quase extintas. Pelos vistos, não. O faroleiro seguiu até à falésia e começou a assobiar, virado para o mar. Ao cabo de uns cinco minutos avistei um vulto na água. Era uma foca-monge, aparentemente comparecendo aos assobios. Colibaly apressou-se a dizer-me que eu tivera muita sorte, pois só muito raramente as poucas focas sobreviventes davam um ar da sua graça.

No caminho de regresso, o costa-marfinense fez questão de me levar a sua casa, onde vivia com a namorada, uma bela mauritana de origem peul que nos preparou um apetitoso jantar. Enquanto aguardávamos, Colibaly, assumido apreciador de “rap”, foi sintonizando diversos canais da África francófona, disponibilizados pela gigantesca antena parabólica (a maior que já vi) instalada no quintal.

Nessa minha segunda noite em Nouadhibou o Baie du Levrier esgotou a capacidade de alojamento. Entre os recém-chegados constava um grupo de turistas belgas, bons bebedores de cerveja, bastante tagarelas e amigos de cães. O mais novo era um verdadeiro sósia do Eminem. Ali e o irmão, cientes das presas que tinham pela frente, não se fizeram rogados e puseram em prática aquilo que melhor sabiam fazer: enganar turistas ingénuos. Logo entendi a pouca simpatia manifestada em relação à minha pessoa, pois não lhes comprara qualquer serviço dos muitos que tinham a propor, apesar das insistentes tentativas. Interessava-lhes muito mais aquele tipo de peixe. O irmão do Ali, que descaradamente os aldrabou no câmbio quando trocaram dinheiro, olhava para mim de vez em quando durante a operação, em busca de cumplicidade. Só faltou piscar-me o olho.

Só não compreendia uma coisa: como é que ainda havia gente capaz de lhes tecer loas – «agradecidos pela hospitalidade» e louvores do género – certificados nas fotocópias de faxes, cartas e postais enviadas ao longo dos anos e que Ali fazia questão de afixar nas paredes, fazendo-as acompanhar de uma foto de si próprio. Mas em que mundo vive esta gente?

A verdade é que Ali e o irmão, os tão apregoados proprietários do Baie du Levrier, não passavam de bandidos, mas até os bandidos têm códigos de honra, o que não parecia ser o caso.

Muito se cantava e rezava nas mesquitas de Nouadhibou. O apelo à oração durou nessa noite cerca de uma hora. Felizmente, o volume do altifalante não estava muito alto. Soube que Alain Jaspard e os seus companheiros de viagem rumavam ao Burkina Faso, onde pretendiam vender as respectivas viaturas, antes de regressar a casa de avião, à semelhança do que faziam muitos europeus.

A presença dos franceses revelar-se-ia providencial, pois assegurar-me-ia boleia até Nouakchott. E não era sem tempo. Já tinha visto o suficiente de Nouadhibou.

A viagem a sul ensinar-me-ia uma coisa. Nas estradas mauritanas o assédio a estrangeiros com viatura própria multiplicava-se por três. Barreiras de controlo, entenda-se. Primeiro, as da polícia; depois, as da “gendarmerie” (que corresponde à GNR portuguesa); finalmente, a dos serviços de alfândega. A propósito destas últimas, comentou, acutilante, Alain Jaspard:

«– O que faz um serviço destes no meio do deserto? Temem que trafiquemos areia?»

Era como se a falta de marcos na paisagem justificasse a presença dos uniformes. Para o Governo, certamente uma forma de criar empregos e iludir as estatísticas. Empregos mal pagos, daí as extorsões, umas mais simpáticas do que outras, todas elas incomodativas. Para os estrangeiros, esse género de circo suscitava conversa e matéria anedótica para o futuro.

«– Deve-se lidar com eles como se fossem crianças. E começar sempre com um “então, não se dá os bons-dias?”», aconselhava Jaspard. No fundo, é uma questão de os desarmar antes que nos desarmem a nós. E assim ficamos com margem de manobra para nos defendermos das suas insinuações.

Tirar uma fotografia numa situação daquelas, apesar de bastante apetecível, dava direito a ficar sem a máquina. E não se pense que os senhores agentes desencorajavam os candidatos. Antes pelo contrário, de certa forma esperavam que alguém cedesse à tentação, para justificar mais uma das suas muitas apreensões.

Joaquim Magalhães de Castro

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