Costa da Memória

Coisas de arquitectura

Para se ficar com uma ideia de como era o dia-a-dia na praça-forte de Mazagão, deixo-vos aqui o olhar do jesuíta Afonso de Dornelas, que, em 1677, descreve assim a procissão de Corpus Christi: “A torre do Rebate, com o seu sino, ia tocando a todos os cinco baluartes, o do Governador que está sobre as portas que saem para o campo, e logo o de Santo António com a ermida da nossa senhora de Penha de França, onde assistem os padres da Companhia, e o baluarte do Norte que fica sobre o mar, assim mais o baluarte do Anjo que fica sobre o cais e couraça onde se desembarca, e outro sim baluarte do Serrão a que chamam do Cavaleiro que serve de dar os rebates.”

Resta referir que Mazagão se encontra geminada com Sintra desde 24 de Maio de 1988, como informa uma placa numa rotunda designada Place de Sintra.

Curiosamente, meses antes da partida fiz uma entrevista a António de Almada Negreiros, arquitecto que participara nos trabalhos de recuperação da “Cidade Portuguesa” de Mazagão. Oportunidade para conhecer melhor o passado de uma das controversas figuras da nossa cultura: seu pai e homónimo. «As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca acabam», dizia Almada Negreiros. E Almada, que muito admiramos, não mais acabou. Homem de múltiplas facetas – ilustrador, escritor, pintor, poeta – o autor dos painéis das gares marítimas de Alcântara e da Rocha foi sobretudo um inovador que, provocatoriamente, atirou a pedra com peso e medida para o meio do charco instalado que era Portugal, burguês e pacóvio, nos primórdios do século XX. E fê-lo com veemência, através do já imortalizado Manifesto Anti-Dantas, Morra o Dantas, morra! Pim!, e de consciência própria. Como afirmava o homem de olhos de menino que aos doze anos já publicava o que escrevia e desenhava, «eu gosto de procurar sozinho para me encontrar com todos».

A vida de Negreiros está cheia de frases sábias. Com as quais o filho iria produzir um retrato dele, parcela de um projecto de tratamento plástico para a nova estação de metro do Saldanha. Nesse projecto seria evocada uma série de acções que marcariam a vida do artista: da literatura à pintura, do azulejo à tapeçaria, passando por facetas menos conhecidas como a de músico ou de desportista. Sim, porque Almada Negreiros tocava piano e chegou a fazer orquestrações para bailados que ele imaginava. «São poucos os que sabem que ele colaborou com Eric Satie», recordava o Almada filho. Praticante de ténis e de futebol – «era capitão e fez parte das primeiras formações de clubes» – Negreiros dava muita importância ao desporto e era dotado de boa capacidade física. «Ainda o vi nessas actividades, mas era o seu trabalho que acabava por o absorver. O meu pai encarava a própria vida como uma obra de arte» – José Almada Negreiros filho dixit.

Igual paixão pelo desporto a do cineasta Manoel de Oliveira, «um seu grande amigo», que tencionava fazer um filme sobre a vida do Poeta do Orpheu, Futurista e Tudo!, «uma ideia que já vem de longe». A revista Orpheu – que ajudou a fundar, em 1915, com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – foi uma referência que hoje consideramos cada vez mais importante, dada a viragem histórica que representou relativamente à evolução da nossa cultura.

Será que se continua a ter em Portugal uma ideia deturpada de Negreiros? «Deturpada não, talvez incompleta», diz o filho. Porque há poucos espaços onde as suas obras possam ser apreciadas. «No plano editorial, contava-se com a dimensão humana do Brasil, mas as expectativas ficaram aquém».

O certo é que sempre que Almada dava conferências, as salas enchiam-se. Os livros que publicava, esgotavam-se. Foi referido e elogiado por contemporâneos seus, alguns deles ainda vivos, que têm uma compreensão do homem e da obra muito diferente da dos que, a frio, fazem a análise histórico-biográfica. Admitia, no entanto, que foram publicados grandes trabalhos, inclusive teses de doutoramento, «fundamentalmente no que à parte literária diz respeito».

Continuava a haver trabalho de investigação de sobra por fazer.

Antes que as figuras se confundam, falemos então de José Almada Negreiros, filho. Era na esfera das artes plásticas que mais arriscava. Escrita? Não propriamente. A profissão era demasiado absorvente e, confessava, sempre tivera de combater a tendência para uma certa dispersão. Gostava de tudo um pouco. Literatura, teatro, pintura. Como o pai. Em termos profissionais, interessava-lhe criar soluções arquitectónicas para os problemas de espaços públicos, de recreação pública: o templo, o teatro, modos de elaboração para receber as pessoas com determinada exigência. O Urbanismo era a sua área de eleição. Desde sempre. E o que pensava de Lisboa? «Uma cidade é um amontoado de problemas terríveis», dizia. Problemas da vida das pessoas que nela vivem. Problemas de um passado histórico que a cidade tem. Problema com a apresentação de soluções para as situações presentes e futuras, e o choque com uma série de limitações técnicas e humanas.

Joaquim Magalhães de Castro

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