O Utraquismo
O termo “utraquismo” deriva do Latim “sub utraque specie”, ou seja, “em ambas as espécies”, sendo, pois, de matriz eucarística. É, com efeito, uma corrente de pensamento cristão que afirma que a Eucaristia deve sempre ser administrada a todos os fiéis em “ambas as espécies”, ou seja, em pão e em vinho. Na prática, tradicionalmente apenas os sacerdotes bebem o vinho consagrado durante a celebração, ministrando o pão. Mas mais do que uma corrente, falamos aqui de uma corrente reformadora da Igreja, que dela se afastou no século XV, na herança do legado de João Huss.
O Utraquismo constitui o principal dogma e um dos quatro artigos essenciais da fé “hussita”, chamemos assim. Foi promulgado pela primeira vez em 1414 por Jakob de Mies, professor de Filosofia da Universidade de Praga, então um foco reformador intenso na Igreja europeia, em pleno Cisma do Ocidente (1378-1417). O seu autor não fôra Huss, refira-se, mas muito do seu teor radica nos ensinamentos deste teólogo da Boémia (actual República Checa). De facto, a Universidade de Praga na época requeria que os seus bacharéis lecionassem com base nas obras de um doutor de Paris ou Oxford, ou mesmo da própria instituição (Praga). Muitos pensam que em cumprimento desta obrigação, Huss apoiou-se nos escritos de Wycliff, um egresso de Oxford que admirava.
Os comentários de Huss tornaram-se, pois, a semente do Utraquismo. Depois, foram entusiasticamente absorvidos pelos estudantes de Praga. Mesmo com Huss preso, a sua influência, e de Wycliff, não mais desapareceu. Uma das suas marcas aparece numa das exigências dos seus sequazes: que a Comunhão se devia administrar sob as duas formas como requisito essencial para a salvação. Que é a essência do Utraquismo. Os concílios de Constança (1414-18), Basileia-Ferrara-Florença (1431-45) e Trento (1545-63) condenariam essa proposição, que consideraram herética.
O Utraquismo, concisamente, tem a seguinte significação teológica: o homem, para se salvar, tem de receber a Sagrada Comunhão quando e onde desejar, sob ambas as espécies, pão e vinho (sub utraque specie). De acordo com os hussitas, tal é um preceito divino. «Se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (João 6,54), repetiam os hussitas, vincando aqui a sua posição em relação à Eucaristia. Receber somente a Hóstia Sagrada não é “beber”, mas sim “comer” o Sangue de Cristo, afirmavam. O facto de se tratar de que se trata de um preceito divino é ainda mais evidenciado pela Tradição, pois até aos séculos XI e XII se ofereciam o Cálice e a Hóstia aos fieis na Comunhão. A graça que se recebe na Comunhão é reforçada pelas duas espécies, rematavam os hussitas utraquistas, como Mies, que a consideravam obrigatória.
A colisão com a Igreja
O Concílio de Constança logo condenou esta conclusão utraquista, movendo-se guerra a todos os que a defendiam. Depois de confrontos e acusações, o Concílio de Basileia, em 1431, permitiu a Comunhão sob ambas as espécies àqueles que tinham atingido o uso da razão e se encontravam em estado de graça, com as seguintes condições: que os utraquistas confessassem que o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade de Cristo estavam presentes na sua totalidade e completamente tanto sob a espécie do Pão como sob a do Vinho; e que se retractassem da sua declaração de que era absoluta e imprescindivelmente necessária a Comunhão sob ambas as espécies para a Salvação. Muitos concordaram, a quem se chamou de Calixtinos, pelo seu uso do Cálix. Mas outros não concordaram. Sob o comando de Ziska, recolheram-se numa montanha na Boémia, chama de Tabor. Por isso ficaram chamados de taboritas. Foram derrotados em 1453, data em que o Utraquismo de Praga se torna em algo declinante.
O Utraquismo não desapareceu. Foi até afirmado como uma das afirmações do Anglicanismo e uma das “Razões evidentes contra a união da Igreja com Roma” (mais atarde, em 1880). Todavia é importante recordar que a Igreja Católica nunca afirmou que a Comunhão sob ambas as espécies seja por si pecaminosa ou herética. A condenação ao utraquismo hussita baseia-se no seu argumento de que era essencial e capital para a Salvação, o que fez reavivar ideias heréticas antigas.
Uma delas fora o Nestorianismo, que, tal como várias heresias, negava a Presença Real, total e completa sob cada uma das duas espécies. Segundo eles, o pão continha somente o Corpo de Cristo e o vinho unicamente o Seu Sangue. Colidia isto com as Escrituras e por isso com os fundamentos teológicos da Igreja: a separação da carne e do sangue é a morte e, por conseguinte, a presença de Cristo total e completa sob cada uma das espécies é dogma da fé católica. Pelas palavras da consagração, o Corpo de Cristo encontra-se sob a aparência do pão, e o Seu Sangue, sob a aparência do vinho. Estava logo o Utraquismo condenado, no século XV como depois. O Corpo e o Sangue, a Alma e a Divindade de Jesus formam uma Pessoa indivisível e por isso deverão estar sempre unidas, evidenciando a força que une o corpo ao sangue e vice-versa, na Eucaristia: a Concomitância, como é conhecida essa força na Teologia.
O Utraquismo tendia a desfazer este dogma. Quando declarava essencial para a salvação a Comunhão sob ambas as espécies, tal equivalia virtualmente a negar que Cristo estivesse total e completamente sob cada uma das espécies. Ia ainda mais além no ataque ao dogma quando declarava que a Comunhão, ou recepção da Eucaristia, era absolutamente necessária para a Salvação, quase uma condição sine qua non, afunilando ou limitando as vias de santificação e salvação dos que acreditam. Mas esclareçamos. Os teólogos distinguem entre dois tipos de necessidade: a de meio e a de preceito. De meio é o uso absolutamente obrigatório daquelas coisas necessárias para se alcançar um propósito: é uma “necessidade imperativa” que surge da mesma natureza das coisas. Já a necessidade de preceito é uma obrigação imposta por uma ordem, e por uma boa razão, aquela que se prescreve e que pode dispensar-se. Os utraquistas sustentavam que a Eucaristia era um meio necessário para a Salvação, de tal forma que quem morresse sem a ter recebido – os dementes, jovens, etc. – não se podia salvar. Citavam João (6,54), de novo.
A Igreja nega essa absoluta necessidade da Eucaristia para tal fim, por mais importante que seja. Ordena aos fieis que a recebam, valoriza-a e declara que é impossível permanecer em estado de Graça muito tempo sem a recepção desse sacramento. Mas tudo isso é um preceito: é possível a dispensa do mesmo. Por isso, se alguém morrer sem esse sacramento, não seria necessariamente condenado por essa razão. Tal é claro desde a Igreja primitiva, até hoje. Mesmo quando existia a Comunhão sob ambas as espécies, muitos a recebiam numa só das espécies. Sem condenações ou problemas de dogma. Por exemplo, aos doentes era assim administrada, sem a Igreja os considerar perdidos. A Igreja é a única intérprete autorizada da doutrina de Cristo, declarando que nenhuma referência bíblica torna obrigatória a Comunhão de ambas espécies. Tudo o mais é especulação, não afectando o dogma nem sendo opinião comum. O Utraquismo confinou-se pois à diluição por entre observâncias dissonantes ou movimentos fora da Igreja.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa