Da Antiguidade à Idade Média
Para se perceberem as heresias, cismas, divisões, rupturas ou controvérsias e tensões no seio da Igreja, há que analisar o seu contexto histórico, antropológico e geográfico. A Igreja em crescimento e em agitação é constituída de homens, mulheres, povos inteiros, nações e Estados, diferenças e antagonismos, harmonias ou equilíbrios, mais ou menos frágeis, mas acima de tudo é feita de Humanidade. Por isso, todas as questões que analisamos nesta série são-no não apenas por motivos religiosos, doutrinais, espirituais, teológicos enfim, mas igualmente causadas por todas diferenças no seio da Cristandade. Porque se trata de uma Igreja una baseada na pluralidade, na diversidade, provavelmente a sua maior riqueza.
Tudo começou com o fim do Império Romano, em 475. Ou até antes. Com as migrações constantes de povos ditos “bárbaros”, germânicos melhor dito. Que não paravam de pressionar o limes (étimo de limite, neste caso significando “fronteira”). Infiltraram-se no Império, capilarmente. Destruíram-no mesmo. Ou ajudar a dissolver a romanidade. Ocorreu a mistura entre o vinho e o azeite do Sul, dos romanos, e a cerveja e a manteiga do Norte, dos “bárbaros”. Misturas difíceis, origem de diferenças, onde apenas a Igreja fora talvez a unidade condutora e de harmonia. Mesmo que com controvérsias a digladiar povos. A ordem antiga, estabelecida, a pax (paz) romana desaparecia, a organização administrativa, a vida cultural e a actividade intelectual. Toda uma marcha de vida greco-romana de mil anos desaparecia, era todo um mundo no ocaso. Ou um maravilhoso mundo novo que nascia. O Outono da Antiguidade, ou a Primavera da Idade Média?
Transições
Saques, matanças, escravidão, populações deslocadas à força, destruição de edifícios e cidades, o mundo ruía. Toda a ideia de um mundo organizado que se esfumava. Ou um sistema de vida em transição. Roma, a toda poderosa, por exemplo, fora saqueada de forma fatal três vezes em pleno século V, por Visigodos (410), Hunos (451, só não saquearam Roma, graças ao Papa São Leão Magno, ao contrário do resto da Itália) e Vândalos (455). O esplendor de Roma era já uma pálida e esbatida imagem do passado… numa cidade em ruínas. A vida urbana desapareceu com a queda de Roma, a Urbe por excelência. A ruralidade ganhava terreno, literalmente. Nascia o Ocidente. E a Idade Média…
Quem salvou a civilização e fez as pontes com o passado, projectando-se no futuro? Todos o sabem e afirmam: a Igreja. Facto. E quem cuidou dos pobres e integrou os marginalizados, migrantes forçados e estropiados? A Igreja, outro facto. Inegável. Os bispos, líderes de comunidades, tornam-se importantes numa sociedade em que o peso da Igreja crescia. Era não apenas a única instituição. Era a referência, a nova matriz.
No Ocidente a cultura salvava-se graças aos monges, que copiaram para códices os textos mais importantes da cultura clássica, ou greco-romana, preservando-a para a posterioridade. Graças a eles, à Igreja portanto, temos hoje conhecimento de muitos desses textos. Sem eles, tudo se tinha perdido. Facto. Bastava recordar-nos de Santo Isidoro de Sevilha, também copiado depois, como um filtro do conhecimento antigo.
O vazio da organização sócio-política da administração romana foi sendo preenchido pela Igreja. Que educava, legislava, enquadrava os novos povos, na fusão também destes com os povos romanos. O mundo forjava-se nesta época, nesta difícil transição. Que só poderia ter acontecido porque existia a Igreja. Poderíamos aqui evocar os quatro pais da cultura ocidental, doutores da Igreja latina (ou do Ocidente), os santos Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Jerónimo e Gregório Magno (senão também Leão Magno), os pais da civilização, integradores e guias da grande comunidade espiritual da Cristandade.
Discussões, fusões, querelas
Uma das consequências de todo este processo, numa análise racional e histórica, foi a estreita união, que resultou em confusão, entre as instituições do Estado com as da Igreja. Foi talvez a face mais negativa, como se pode adivinhar. E que criou um lastro de polémicas no futuro, questões e dissensões, divisões. Veja-se o que sucedeu nas Espanhas (a designação na época para a actual Península Ibérica), com os Concílios Nacionais de Toledo, capital do reino visigótico. Recaredo, um dos seus soberanos, por exemplo, como os seus sucessores convocavam os Concílios, determinavam as matérias a discutir, as deliberações até. Dirigiam ainda as sessões, tomavam posições e assinavam no fim as actas! Maior ingerência não podia existir e, claro, nascia aqui um precedente, ou uma tentação para futuros monarcas e líderes. Qual era a diferença que existia entre assembleias do reino e assembleias eclesiais afinal? Era a lógica da época, certo, mas na realidade criaram sementes de abusos e devassa de poderes por uma e outra instituição. Igreja e Estado. Mesmo que, em verdade, tenham sido importantes e eficazes para o desenvolvimento de ambos.
Pode-se entender no título destes artigos desta série uma conotação negativa. Mas temos que ver que há também outras sementes de discernimento e evolução positiva. Neste caso em análise, foi graças a esses Concílios e aos seus bispos (Igreja), em particular, que se criou a ética dos soberanos, marcada pelas virtudes da justiça (iustitia) e da piedade (pietas), além de introduzirem a consagração dos reis de forma a fortalecer a sua soberania e respeito pelos súbditos ou a mesma (soberania) a ser também instituída como um ofício e praxis. Existia uma deterioração das instituições antigas, da cultura clássica, mas nem tudo se perdeu ou mitigou.
Houve faróis, luzes no horizonte, a guiar a marcha de vida da Idade Média nascente. Boécio (480-524), filósofo e estadista; Cassiodoro (477-570), monge romano, de origem nobre, com cargos na administração dos Ostrogodos, tendo sido um dos artífices da transição entre a romanidade e a germanidade, ou a nova Europa. Conservou a cultura clássica ao estimular, no seu mosteiro no Sul de Itália, a cópia de textos antigos, por exemplo. Já aqui falámos de Isidoro de Sevilha (560-636) e de seu irmão Leandro, que contribuíram para a criação de centros culturais (Sevilha e Toledo) fora da Itália. Isidoro, arcebispo daquela cidade depois de 600, fundou escolas na sua cidade e criou um novo sistema educativo, escrevendo a famosíssima obra “Etimologias”, a primeira grande enciclopédia dos novos tempos.
O mundo antigo não se perdia, a cultura renascia. Não estávamos afinal em trevas. Antes com luminárias, luzes. Mas também espreitavam crises e controvérsias…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa