No meio do trânsito, a virtude!
Numa semana marcada, essencialmente, por chuva e muita humidade, Portugal viveu mais umas eleições – desta vez para o Presidente da República. No entanto, olhando para os números, a maioria das pessoas nem sequer se importou. Ainda assim, apesar do vencedor ter sido quem já se esperava, ficámos a saber que o sentimento de insatisfação para com a democracia actualmente existente em Portugal vai em crescendo. Aliás, os resultados de um partido que defende políticas ditas extremas ou radicais são disso reflexo. A verdade, é que como tudo isto pouco vai afectando a vida prática de cada um, a abstenção foi mais que muita, estando as pessoas mais preocupadas com os números da pandemia que diariamente vão sendo revelados pelas televisões, rádios, jornais e nas redes sociais. Tudo o resto é, pois, acessório, a não ser – claro está! – que haja futebol. Na sociedade portuguesa o que interessa mesmo é o futebol.
Tenho para mim que uma grande massa da sociedade nem se lembra, ou não sabe, que foi aprovada a Lei da Eutanásia na passada semana. Aprovada na especialidade pela Assembleia da República, mas o que continua a interessar é o número de mortos com Covid-19 e o futebol, especialmente agora que há vários infectados com o novo coronavírus em alguns clubes.
Na zona centro de Portugal, mais precisamente em Aveiro, onde nos encontramos, as pessoas não encaram o dia-a-dia de forma diferente do resto do País. É verdade que a pandemia levou o Governo a decretar mais um confinamento geral, mas olhando sentado entre as mesas vazias do Dee Thai Eatery, à beira-ria, não vejo nada de muito diferente em comparação com qualquer outro dia de chuva: os carros não param de passar e as pessoas insistem em passear, mesmo com chuva. Só não podemos ter clientes devido às regras do confinamento. Estamos a funcionar em regime “takeaway” e com entregas ao domicílio, porque a pandemia está aí, mas as despesas não desaparecem. Embora muito prometa em ajudar os pequenos empresários, o Governo tarda em accionar os mecanismos há muito anunciados pelo Executivo liderado por António Costa.
Como não é possível passear mas temos de efectuar as entregas ao domicílio, vamos aproveitando para olhar ao redor com mais atenção. Numa das últimas entregas deparei com uma pequena capela, localizada na zona de São Bernardo. Esta é uma área periférica da cidade de Aveiro que nos últimos anos tem tido um crescimento desenfreado devido à crescente procura de alojamento no Concelho. Para quem não saiba, a “Veneza Portuguesa” é a cidade com os preços de arrendamento mais altos de Portugal. Nem em Lisboa e no Porto a especulação atinge estes níveis. Em Aveiro facilmente se paga mil euros por um estúdio. As razões por detrás deste fenómeno prendem-se com o desenvolvimento dos parques industriais em redor da urbe, a explosão pré-pandemia do sector do turismo e a enorme procura de Aveiro por parte de estrangeiros que aqui pretendem fixar residência. Como a procura é bastante superior à oferta, os preços de arrendamento e aquisição dispararam para níveis inimagináveis.
Em São Bernardo, hoje uma das zonas mais densamente povoadas de Aveiro, há uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Saúde. Fica no lugar de Patela; literalmente, no meio da rua! Está na confluência de três artérias: Rua de Nossa Senhora da Saúde, Rua da Patela e Rua de Anselmo Lopes. Façam uma pesquisa no Google Maps para verem o que vos digo. O último arranjo feito no local para facilitar o fluxo do trânsito fez com que a capela ficasse – finalmente – encostada a um dos lados. A realidade é que não há muito tempo o trânsito tinha de circular à volta da capela, servindo esta de rotunda.
Trata-se de um pequeno templo, sem grandes atractivos e do qual pouco se sabe. A própria Diocese não conseguiu dar-me a data de construção, bem como outro qualquer detalhe sobre a sua história. Sabe-se que é dedicada a Nossa Senhora da Saúde e que ainda hoje os moradores ali se dirigem para venerar a Santa.
Nos últimos anos, já com o trânsito a passar-lhe ao lado e com melhores condições de acesso para os fiéis, parece ter perdido um pouco as suas características. O facto de ter “saído do meio da estrada” deve ter contribuído para tal. Afinal, passou a ser uma capela, como tantas outras em Portugal, à beira da estrada.
Com o passar dos anos a degradação deste tipo de estrutura torna-se mais acentuada. Daí que as autoridades municipais consideraram ser necessário fazer algo para impedir a sua total decadência. Por este motivo, em Julho de 2020 lançaram um concurso público de reconstrução da Capela de Nossa Senhora da Saúde. Acontece que passado o prazo para a apresentação de propostas ninguém se mostrou interessado em participar, o que obrigou a Câmara Municipal de Aveiro a subir o valor da empreitada para quase cinquenta mil euros. Mesmo assim não parece haver interessados em meter mãos à obra para restaurar as paredes, o telhado e o piso da pequena capela, que não tem mais de cinquenta metros quadrados. Isto é, a empreitada está orçamentada em cerca de mil euros por metro quadrado. Caso nada seja feito, há o risco de se perder mais uma pérola do vasto património religioso existente em Portugal, sendo esta uma pequena pérola que outrora foi polo de atracção e de religiosidade.
Segundo alguns residentes, o facto do trânsito ter sido desviado pode ajudar a explicar o porquê do actual desinteresse por um lugar de culto que já foi místico para estas gentes. Urge então preservar as características da capela, que permanecem iguais desde a sua construção, para que não caia no esquecimento e desapareça para sempre.
Agora, sempre que passo pela capela durante a semana, pergunto a mim mesmo o que poderá ser feito. Compreendo que voltar a colocar os carros a circular em seu redor não é prático e é perigoso, dado o fluxo de trânsito no local. Mas, por amor da Santa – neste caso, por amor de Nossa Senhora da Saúde –, senhores autarcas encontrem soluções para preservar a capela. É que pela sua história e pela importância que os fiéis lhe atribuem, merece melhor sorte do que o abandono a que parece estar condenada, a ponto de nem os construtores civis, sempre ávidos de lucro rápido, lhe quererem pegar….
João Santos Gomes