O efeito Cabo Delgado
Um ataque no penúltimo dia de 2022 à aldeia de Namande, no distrito de Muidumbe, província de Cabo Delgado, é a mais recente barbaridade do autodenominado ISIS-Moçambique, como bem demonstram as desoladoras imagens de uma aldeia habitada por cristãos reduzida a escombros, exibidas nas redes sociais dessa agremiação terrorista. Desta feita, porém, os ditos “jihadistas” foram confrontados com milícias cristãs que os obrigaram a fugir, evitando assim maiores estragos. Aqueles, infelizmente, capturaram um dos resistentes e executaram-no sumariamente com os habituais requintes de malvadez que constituem já uma das suas imagens de marca.
Graças à iniciativa do ministro da Defesa moçambicano, Cristóvão Chume, responsável pela apresentação de um projecto-lei, o Parlamento moçambicano autorizou o envolvimento de milícias locais na luta contra os jihadistas. Chume admitiu, em declarações à agência noticiosa FIDES, a incapacidade do Exército moçambicano para enfrentar sozinho o problema, justificando a necessidade dessa milícia local para “reforçar as Forças de Defesa e Segurança no combate e contenção da propagação de incursões terroristas, protegendo os assentamentos comunitários e as infraestruturas públicas e privadas”, esperando que a nova lei permita uma melhor “estruturação, organização e apoio logístico” das milícias de autodefesa locais. O termo “força local” começou a ser utilizado em Moçambique para designar “grupos de ex-militares dos movimentos de libertação nacional e seus descendentes que se organizaram para combater os grupos armados que aterrorizam a província de Cabo Delgado”. Esclareceu Cristóvão Chume que o Governo moçambicano está ciente do carácter provisório dessas milícias e, por isso, irá continuar a apostar nas forças de defesa convencionais, “locais e internacionais”.
Para tentar conter o ISIS-Moçambique, Maputo tem recorrido a tropas enviadas pelos Estados-membros da SADC (Southern African Development Community) e pelo Ruanda, tendo mostrado vontade o Presidente deste país, Yoweri Museveni, de prestar ainda maior apoio militar e económico à ex-colónia portuguesa. Com isso, lograram já, os militares moçambicanos, “libertar alguns dos distritos do Norte do País”, para que de novo se possa aí explorar os campos de gás natural, “obrigando” assim os jihadistas a expandir os seus ataques “mais a sul e para a vizinha província de Nampula”, onde em Setembro de 2022 foi brutalmente assassinada uma missionária comboniana de nacionalidade italiana (ver página 11 desta edição).
D. Inácio Lucas, bispo da diocese de Gurué, na província moçambicana da Zambézia, tem vindo a alertar para o alastramento da violência armada. “Falamos de Cabo Delgado como se fosse um caso único, mas não é. Todo o País está a ser afectado por esta guerra; é verdade que em Maputo ou na Beira se pode dormir descansado, mas a situação em Cabo Delgado afecta-nos a todos”, sublinhou. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a acção terrorista dos jihadistas provocou já cerca de quatro mil vítimas e um milhão de refugiados.
A província de Cabo Delgado é um “paraíso energético” para um mundo cada vez mais dependente das fontes de energia, tradicionais ou renováveis. Além do petróleo e do gás natural, na região abunda também o grafite, componente essencial nas baterias dos carros eléctricos. A mina de Balama, operada por uma empresa australiana, foi considerada de “importância estratégica” pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos. A grafite aí extraída é enviada para uma fábrica no Louisiana onde é processada “para a construção dos ânodos das baterias dos carros elétricos”. E é essa riqueza, parodoxalmente, a verdadeira maldição para os mais desfavorecidos! Não é coincidência o facto de ao início da exploração desse vasto potencial de mineração, em 2017, corresponder o espoletar do fundamentalismo islâmico, um fenómeno até então completamente alheio àquela região. “Nunca aqui houve anteriormente conflitos religiosos”, afirma Johan Viljoen, director do Denis Hurley Peace Institute (DHPI), em entrevista ao jornal católico online Crux. Na opinião de Viljoen, “a maneira mais fácil de expulsar o povo da sua terra é fomentar um clima de insurreição e subsequente insegurança. Assim, as pessoas vêm-se obrigadas a fugir e as terras onde habitavam são entregues de mão beijada às multinacionais”. “Entre os residentes em Moçambique, e particularmente nas zonas afectadas pela acção dos jihadistas, prevalece a opinião de que se trata de uma estratégia deliberada e bem organizada para expulsar as populações dos seus territórios ancestrais”, diz Johan Viljoen.
O Denis Hurley Peace Institute – assim designado em honra do arcebispo católico sul-africano Denis Eugene Hurley, uma voz crítica da Igreja durante os anos do “apartheid” na África do Sul – pugna pela construção da paz e garantia de direitos humanos para todos. Para o DHPI, “a paz é muito mais do que a ausência de guerra”. Tem como principal missão “colaborar para a paz em África”, promovendo constantemente “o diálogo, a justiça e a reconciliação”.
Joaquim Magalhães de Castro