Da exclusão à desconfiança
Nas páginas do jornal virtual “Patrin”, especializado em questões de cultura e história dos ciganos, o nome de Portugal não aparece uma única vez. Nem na secção dos Costumes e Tradições nem na da Cultura e Artes, tão pouco nos variados artigos que nos lembram as vítimas esquecidas de um outro holocausto: o holocausto dos rom, manouche, sinti ou calon – diferentes ramos de um mesmo povo originário do subcontinente indiano que palmilhou mundo como forma de rejeição do sistema de castas e do violento avanço do Islão. Adolfo Hitler elegeu-os, juntamente com os judeus, como alvo preferencial a abater. Razão suficiente para que sejam várias as associações específicas a essa etnia. Porém, na lista do “Patrin” referente aos diferentes organismos não há qualquer referência a Portugal. Tentei, por isso, um portal em Português. Aí sim, não faltam entradas. Praticamente todas para sítios brasileiros, essencialmente ligados a questões de astrologia e esoterismo. Em Português de Portugal só mesmo uma breve nota.
Miriam Maia, dançarina de flamenco, atribui a lacuna à integração dos ciganos no país que no século XVI lhes serviu de abrigo, depois de uma travessia intercontinental que remonta ao século X. «Integramo-nos na sociedade e não vemos necessidade em constituir associações que nos particularizem, não vemos necessidade de fazer festivais em que só os ciganos participem. No fundo, o que nos distingue dos restantes portugueses é o facto de sermos essencialmente negociantes, feirantes. Só isso», diz.
Miriam Maia é casada com um gadjé. Ou seja: um não cigano. A comprovar a disposição dos ciganos de se integrarem na sociedade portuguesa. Isto, apesar dos preconceitos existentes em relação a essa comunidade. Muito por culpa, no entender de Miriam, da Comunicação Social.
Os ciganos entraram em Portugal, via Espanha, em 1516, mais precisamente pelo Alentejo, região descampada e com matagais. Desde logo foram impedidos de ler a sina, expressar costumes e tradições, falar romani e usar vestimenta tradicional. Os transgressores eram presos e podiam, inclusive, ser condenados à morte. Portugal deportou inúmeros ciganos para o Brasil. O primeiro degredado para a essa extensão do império que muita gente continua a considerar uma ex-colónia, em 1574, chamava-se João Torres. Curiosamente, em 1808, seria contratado, como músico, pela família real portuguesa no exílio.
Pessoalmente Miriam Maia não sente o racismo, talvez por fazer parte, à semelhança de João Torres, de um grupo privilegiado: a de os músicos e dançarinos profissionais. Admite, no entanto, que persistem ainda muitos preconceitos. Para cuja razão de ser não encontra explicação. «Quem sente esse preconceito é que poderá responder», comenta.
Miriam aponta ainda o dedo à Comunicação Social. E explica porquê: «Quando alguém é apanhado com droga, seja alto seja baixo, seja pobre seja rico, é sempre um alguém. Caso seja cigano, a Imprensa, então, faz questão de salientar que ele é, para além de alguém, cigano. E fá-lo por mero sensacionalismo». A dançarina, e também cantora, tem a certeza que os grandes traficantes não são ciganos. Muitas vezes não passam de «uns desgraçados que querem comer e não têm dinheiro» e que antes viram sucessivos pedidos de emprego serem recusados só pelo facto de serem quem são. Emprego que meta caixa registadora ou atendimento ao público, como reafirma Miriam Maia, está completamente fora de questão. «Há uma falta de confiança generalizada em relação ao nosso povo», admite.
A obra Gil Vicente “Farsa de Ciganos” é representada em Évora, em 1521, numa época em que já se associavam os ciganos a “uma comunidade de gente nómada que se dedica a roubar num sítio aquilo que vão vender no outro”. O comércio dos equídeos e “as práticas de feitiçaria, quiromancia e cartomancia” eram as áreas predilectas de uma gente peculiar que percorria o País em “quadrilhas”. Desconfiado desse incontrolável modo de vida, D. João III, pelo alvará de 13 de Março de 1526, interdita a sua entrada em Portugal, “ordenando a expulsão de todos os que aqui viviam”. Seriam muitas as leis promulgadas com idêntica finalidade, mas quanto mais severas, mais inúteis se revelavam. A questão da expulsão dos ciganos só a partir do século XIX seria posta de lado, passando os ciganos a serem considerados cidadãos portugueses, “embora se soubesse que estes se auto-excluíam de prestar qualquer serviço à comunidade, nem se manifestavam dispostos a aceitarem as suas leis”.
Joaquim Magalhães de Castro