«Sem paixão não pode haver missão»
Superior Geral da Sociedade Missionária da Boa Nova, Adelino Ascenso já era missionário antes de o ser. O padre português decidiu enveredar pelo caminho do Sacerdócio já depois dos trinta anos, uma epifania que lhe chegou quando estava num mosteiro tibetano no Nepal. Artista plástico convertido em soldado de Deus, o actual timoneiro da Sociedade Missionária da Boa palmilhou a Ásia e a América Latina movido pela mesma inquietação que o levou a consagrar o resto da vida ao trabalho missionário. O padre Adelino Ascenso em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– Há dois mil anos, Jesus Cristo confiou à Igreja a missão de evangelizar todos os povos até aos confins da Terra. Como é conduzida esta missão, no início do terceiro milénio?
PADRE ADELINO ASCENSO– As mudanças vertiginosamente aceleradas e a alteração ou substituição das nossas referências são razões para preocupação quanto a um futuro incerto, mas também uma oportunidade para abertura a novos campos. Nos inícios do terceiro milénio, em que o pluralismo cultural e religioso é uma constante, incluindo o fenómeno migratório, a Igreja depara-se com novos desafios no que diz respeito à evangelização dos povos. A questão essencial com que o missionário se depara é o “como”: aprender como viver juntos, como respeitar o outro, como dialogar com o diferente. A inculturação, no sentido de “florescer” dentro da cultura é exigência incontornável. Para isso urge que se afine a nossa capacidade de escutar aquilo que o outro tem para nos dizer. Requer-se um género de novo paradigma da missão, o qual terá de passar pelo “ide e silenciai”, “ide e escutai”, “ide e aprendei”, “ide e acompanhai”. O “ide e ensinai” pode obstruir de tal forma o diálogo que, na nossa avidez de transmitirmos aquilo em que acreditamos, depreciemos o que o outro tem para nos ensinar.
CL– Como pode alguém ser missionário e honrar os ensinamentos de Jesus e a Palavra de Deus hoje em dia? Quais são os principais desafios?
P.A.A.– Eu distinguiria três desafios principais: a diversidade de religiões, o diálogo com os indiferentes e a valorização da cultura. Na variedade de religiões, requer-se um diálogo inter-religioso aberto, fraterno, sério e convicto, sem ambições – mais ou menos veladas – de converter o outro e sem se cair na cilada do sincretismo difuso com perda da própria identidade. Relativamente aos indiferentes, requer-se uma abordagem antropológica, lavrando o solo da dimensão pré-religiosa da nossa humanidade, isto é, aquele terreno prévio a qualquer nomenclatura religiosa, onde o ser humano se depara com elementos primordiais e comuns, tais como sofrimento, sentido da existência, traição, sede de amor. Finalmente, a valorização da cultura e das suas diversas manifestações apresenta-se como um grande desafio ao missionário, uma vez que aparece, com frequência, despida de roupagem religiosa, pelo que se deve procurar os sinais de transcendência aí ocultos e que são, normalmente, muito fortes.
CL– De que qualidades se faz um missionário? É necessário bem mais do que fé e coragem…
P.A.A.– Requer-se paixão, pois a história da evangelização começou «com uma busca apaixonada do Senhor» (Papa Francisco, Mensagem para o DMM 2021). Sem paixão, não pode haver missão. O missionário terá de mergulhar num género de humilde escuta e concentrar as energias numa “metodologia do testemunho”, uma vez que as palavras só comovem e movem se foram expressão da paixão que o agita. E elas só serão expressão da paixão que o agita se se tornarem elemento constituinte do seu ser. Deverá ser emissor de esperança e de confiança. Dizia o Papa Francisco, a 13 de Maio de 2017, em Fátima, que «o rosto belo da Igreja brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor». O missionário deverá ser destemido e avançar para o desconhecido, de janelas abertas às surpresas do Espírito.
CL– Tem um percurso atípico no seio da Igreja. É ordenado sacerdote aos 43 anos, mas antes disso já tinha corrido o mundo e, de certo modo, adoptado a missão como estilo de vida. O Sacerdócio trouxe uma maior profundidade a esse desígnio?
P.A.A.– O Sacerdócio foi, no meu caso, a continuação natural daquilo que fora a minha busca ao longo dos anos anteriores, pelo que, neste sentido, ter-me-á dado mais profundidade. Mas continuo a ser um buscador insatisfeito, sempre no encalço do “Deus possível” nas situações de maior dúvida ou perplexidades.
CL– Para quem cresceu em Portugal, a ideia de missão sempre foi sinónimo da Sociedade Missionária da Boa Nova. Que desafios se colocam aos padres e aos leigos da Boa Nova? A falta de vocações é uma preocupação?
P.A.A.– Penso que os desafios que se colocam aos padres e aos leigos da Boa Nova são transversais a todos os Institutos: escassez de vocações; internacionalidade e interculturalidade; peso das estruturas; fragilidade da dimensão comunitária, a qual se agravou com a pandemia de Covid-19.
CL– A vocação missionária é verdadeiramente um dom e um dos maiores tesouros da Igreja. O que diria àqueles que se sentem chamados à missão?
P.A.A.– Que sejam destemidos e não temam o salto no desconhecido. Que não se deixem obstruir pela tentação limitatória dos “se” e dos “mas”. Se se ficar prisioneiro da ansiedade provocada pelos “se”, perde-se a visão panorâmica e deixa de se ver as flores do jardim e o sorriso das crianças ou não se escuta as vozes alegres do amigo. O “mas”, pelo seu lado, não permite a entrega total; é calculista, condicionando o compromisso. Um amor que impõe condições ainda não amadureceu. Eu sigo-te, Senhor, mas «permite primeiro que me despeça dos que estão em casa» (Lc., 9,61). «Eu seguir-te-ei, mas o que é que receberei em troca?». «Eu quero seguir-te, mas…». A resposta de Jesus é lapidar: «Aquele que põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus» (Lc., 9,61). O calculismo excessivo corrói-nos e entorpece-nos, dificultando em nós o entendimento de que somos chamados a uma renovada “saída” missionária (Papa Francisco) que responda aos desafios do nosso tempo e se enquadre nas periferias com que nos deparamos e que nos poderão estar muito próximas. Àqueles que se sentem chamados à missão, eu diria que não deixem de sonhar, que se abram à novidade, à surpresa, ao pasmo e que testemunhem, com a sua existência, a confiança e a alegria. Não tendo medo de correr riscos, já que “a ausência de risco é sinal seguro de mediocridade” (Charles de Foucault).
Marco Carvalho